Uma menina saudável de 9 anos apresentou úlceras vulvares dolorosas e disúria de início agudo. O exame físico da mucosa genital mostrou úlceras profundas bem delimitadas, com centro fibrinoso e bordas eritematosas elevadas nos grandes lábios (fig. 1). As úlceras apresentavam mais de 1cm de diâmetro, em padrão de espelho. Relatava febre alta de até 38,5°C, odinofagia, congestão e mal‐estar havia uma semana. Os testes sorológicos foram negativos para herpes‐vírus simplex, vírus Epstein‐Barr, citomegalovírus, vírus da imunodeficiência humana (HIV) e a avaliação laboratorial de doenças venéreas (VDRL, do inglês venereal disease research laboratory) também foi negativa. A pesquisa de anticorpos antinucleares e anti‐DNA foi negativa. O hemograma completo e o exame de urina tiveram resultados normais. Testes hormonais como estradiol, prolactina, hormônio folículo‐estimulante (FSH) e hormônio luteinizante (LH) foram normais para sua idade. Foi feito o diagnóstico de úlcera de Lipschütz. A paciente iniciou uso de creme anestésico tópico, e as úlceras mostraram resolução total após duas semanas, sem cicatrizes. Não houve novos episódios ao longo de um ano de acompanhamento.
A úlcera de Lipschütz, também conhecida como ulceração genital aguda reativa não transmitida sexualmente, é uma entidade clínica muito incomum que costuma ocorrer em mulheres jovens sexualmente inativas.1 Caracteriza‐se por início abrupto, dor local intensa e disúria. Sua morfologia é variável, muitas vezes apresentando padrão bilateral de “beijo”, com aparência simétrica em lados opostos da vulva.2,3 Além disso, foram descritas úlceras necróticas com edema e eritema significativos dos lábios vaginais e linfadenopatia inguinal.2,4 As úlceras podem ser únicas ou múltiplas, com bordas elevadas e bem demarcadas. A maioria delas é frequentemente recoberta por exsudato cinza ou escara cinza‐escura.3 Normalmente, as úlceras estão localizadas nos pequenos lábios, mas também podem ser encontradas nos grandes lábios, períneo e na parte inferior da vagina. Afeta principalmente adolescentes e mulheres jovens, e é incomum em crianças.2
Em geral, a úlcera de Lipschütz é precedida por sintomas semelhantes aos da gripe. Sua etiologia e patogênese ainda são desconhecidas,2,3 embora alguns vírus ou bactérias tenham sido associados a essa entidade (vírus Epstein‐Barr, Mycoplasma e infecção por influenza A). O mecanismo patogênico não é claro, mas suspeita‐se de um processo reativo desencadeado por uma infecção distante, com deposição de imunocomplexos nos vasos dérmicos causando microtrombose e, eventualmente, levando a úlceras profundas, necrosantes e dolorosas.4 O diagnóstico é feito por exclusão, após a eliminação de outras causas de ulcerações genitais. O diagnóstico diferencial inclui úlceras de origem venérea e não venérea, doenças autoimunes, trauma e tumores malignos.5
O tratamento é principalmente sintomático, com resolução espontânea em duas a seis semanas e sem recorrências na maioria dos casos. Em virtude de sua evolução autolimitada, os cuidados locais são suficientes. Anestésicos tópicos, corticoides tópicos e analgésicos orais são geralmente indicados. Por outro lado, se o paciente apresentar dor intensa ou mal‐estar, a internação é indicada, pois o uso de corticoide sistêmico e antibióticos de amplo espectro são recomendados.
A úlcera de Lipschütz é um desafio na prática clínica, e costuma ser subdiagnosticada ou diagnosticada erroneamente. Além disso, há grande ansiedade e confusão para os pacientes e suas famílias, pois o diagnóstico do herpes‐vírus simplex é muitas vezes feito de maneira presuntiva. Destacamos, portanto, a importância de ter em mente esse diagnóstico incomum, especialmente em uma jovem menina ou adolescente com úlceras genitais agudas.
Suporte financeiroEste artigo foi financiado pela Universidad de La Frontera [DI13‐0051].
Contribuição dos autoresFabiola Schafer: Aprovação da versão final do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação no desenho do estudo; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Rodrigo Miranda: Aprovação da versão final do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação no desenho do estudo; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.