Afecções dermatológicas são muito prevalentes; entretanto, apesar de geralmente apresentarem baixa mortalidade, podem infligir alta morbidade e impacto na qualidade de vida (QV). Ademais, o convívio com portadores de dermatoses pode refletir angústia, demandar cuidados e gasto financeiro. Assim, a doença dermatológica pode interferir na dinâmica familiar. O impacto da doença na QV do paciente é denominado “impacto primário”, e quando envolve os familiares e/ou conviventes, chama‐se “impacto secundário”.1 Compreender as dificuldades enfrentadas pelos familiares é essencial para a criação de programas educacionais e planejamento de apoio para a promoção de QV de quem convive com pacientes dermatológicos.
O Family Dermatology Life Quality Index (FDLQI) é instrumento genérico, autopreenchido, para a avaliação do impacto secundário aos conviventes com portadores de doenças dermatológicas. Compõe‐se de 10 itens de respostas graduadas em escala do tipo Likert, que variam de 0 (“nada”) a 3 (“muitíssimo”), considerando aspectos físicos (cansaço e sobrecarga física), psicológicos e sociais, assim como os relacionados a relações pessoais, laborais e financeiras.2 O FDLQI apresentou elevada consistência interna para diversas línguas como inglês (original), japonês e persa.3,4 Foi desenvolvido na Universidade de Cardiff (País de Gales), pelo mesmo grupo que elaborou o Dermatology Life Quality Index (DLQI). Não há outros instrumentos genéricos para avaliação da QV de conviventes com portadores de dermatoses. Todavia, há questionários específicos disponíveis, como o Psoriasis Family Index (PFI) e o FamilyDermatitis Impact (FDI), ambos traduzidos e validados no Brasil.5,6
Conduziu‐se estudo tipo metodológico com objetivo de traduzir, adaptar culturalmente e validar o FDLQI para a língua portuguesa do Brasil (FDLQI‐BRA). O projeto foi aprovado pelo comitê de ética institucional e o consentimento foi obtido dos participantes.
Após autorização dos autores, conduziu‐se a tradução para o português e retrotradução. Para essa etapa, quatro especialistas fluentes em português e inglês, e um não especialista, geraram versão traduzida consensual, cuja retrotradução foi aprovada pelos autores do instrumento.7
Para a adaptação cultural, 10 familiares de pacientes portadores de doenças dermatológicas responderam ao questionário, e foram interrogados a respeito da clareza da linguagem utilizada, sobre a adequação dos termos linguísticos adotados, acerca da aplicabilidade do instrumento e sua relevância na prática clínica dermatológica. Essa etapa gerou a versão final brasileira: FDLQI‐BRA (Material Suplementar 1 e 2).
Para validação de conteúdo, foram selecionados cinco dermatologistas experientes, e solicitados que avaliassem os itens conforme sua relevância e pertinência. Essa avaliação foi realizada por escala do tipo Likert, graduada de 1 a 5 ‐ em que 1 é irrelevante/pouco pertinente e 5 é muitíssimo relevante/pertinente.7 O cálculo do Índice de Validação de Conteúdo (IVC) resultou em escores ≥ 0,8 na maioria dos itens, com exceção ao item 6 (“recreação e lazer”), com 0,6.8
Para a fase de validação do FDLQI‐BRA, foram incluídos 111 participantes com idade ≥ 18 anos, que coabitavam o domicílio do paciente. Os critérios de não inclusão foram familiares portadores de comorbidades complicadas ou não controladas, que possam interferir em sua QV. O dimensionamento amostral inicial baseou‐se na necessidade de cerca de 10 participantes para cada item do instrumento unidimensional em validação, totalizando ao menos 100 familiares.9
Os participantes foram recrutados tanto nos ambulatórios do serviço de dermatologia da Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp, Botucatu‐SP, Brasil) quanto no consultório privado da pesquisadora (Sorocaba‐SP). Não houve seleção por doença.
Um subgrupo de 20 familiares respondeu novamente o questionário em intervalo de 3 a 10 dias, conquanto que relatada a manutenção do quadro dermatológico do paciente, para estimar a estabilidade temporal do instrumento. Outro subgrupo de 20 familiares respondeu o questionário em intervalo de 30 a 60 dias, após constatação de melhora clínica do quadro dermatológico, para estimar a responsividade do instrumento.
A consistência interna foi avaliada pelo coeficiente Cronbach‐α. A correlação entre os itens do instrumento foi calculada pelo coeficiente de Spearman. A estabilidade temporal foi estimada pelo coeficiente de correlação intraclasses, e a responsividade, pelo teste de Wilcoxon.
Os achados demográficos dos familiares estão representados na tabela 1, e os diagnósticos dermatológicos dos pacientes estão descritos na tabela 2. Todos os questionários foram preenchidos completamente, não havendo dúvidas sobre a composição dos itens.
Principais dados dos familiares que participaram do estágio de validação do FDLQI‐BRA (n=111)
Variáveis | Resultados | |
---|---|---|
Relação familiar | Pais | 54 (49%) |
Companheiros | 30 (27%) | |
Irmãos | 12 (11%) | |
Filhos | 8 (7,5%) | |
Avós | 7 (6,5%) | |
Sexo | Feminino | 79 (71%) |
Masculino | 32 (29%) | |
Idade, anos | Média (DP) | 42 (13) |
Nível de educação | Fundamental | 31 (27%) |
Médio | 40 (36%) | |
Superior | 40 (36%) | |
FDLQI‐BRA | Mediana (p25‐p75) | 6 (4‐12) |
DP, desvio‐padrão; p25‐p75, primeiro e terceiro quartis.
Diagnósticos dermatológicos dos pacientes (n=111)
Diagnóstico | Número de pacientes | % |
---|---|---|
Acne | 18 | 16% |
Dermatite atópica | 11 | 10% |
Psoríase | 7 | 6% |
Câncer de pele | 7 | 6% |
Verruga viral | 6 | 5% |
Dermatite de contato | 4 | 4% |
Ceratose actínica | 3 | 3% |
Melasma | 3 | 3% |
Rosácea | 3 | 3% |
Alopecia areata | 3 | 3% |
Dermatite seborreica | 3 | 3% |
Úlcera dos membros inferiores | 3 | 3% |
Alopecia androgenética | 2 | 2% |
Lúpus | 2 | 2% |
Disidrose | 2 | 2% |
Molusco contagioso | 2 | 2% |
Outros | 32 | 27% |
Os escores do FDLQI‐BRA variaram de 0 a 27. A distribuição das pontuações foi assimétrica para a maioria dos itens (fig. 1). Concomitante a isso, os itens F5 (“vida social”), F6 (“recreação/lazer”) e F9 (“trabalho/estudo”) apresentaram mais de 60% das ocorrências classificadas como “nada”, gerando “efeito chão”.10
A análise da consistência interna global do FDLQI‐BRA (coeficiente Cronbach‐α) resultou em 0,855 (95%CI 0,818‐0,887), revelando‐se adequada para esse instrumento.
A análise paralela de Horn indicou unidimensionalidade para o FDLQI‐BRA. O coeficiente KMO foi de 0,803 (p<0,01), indicando adequação da amostra para análise fatorial exploratória. A variância da variável latente explicada pelo fator unidimensional foi de 53,6%, e a matriz de correlação item‐item e item‐total resultou nos coeficientes dispostos na tabela 3.
Correlação (rho de Spearman) item‐item e item‐total do FDLQI‐BRA (n=111)
F1 | F2 | F3 | F4 | F5 | F6 | F7 | F8 | F9 | F10 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
F2 | 0,563 | |||||||||
F3 | 0,283 | 0,569 | ||||||||
F4 | 0,323 | 0,315 | 0,395 | |||||||
F5 | 0,258 | 0,363 | 0,508 | 0,316 | ||||||
F6 | 0,308 | 0,470 | 0,400 | 0,177 | 0,50 | |||||
F7 | 0,345 | 0,479 | 0,190 | 0,277 | 0,220 | 0,150 | ||||
F8 | 0,206 | 0,352 | 0,318 | 0,341 | 0,381 | 0,249 | 0,440 | |||
F9 | 0,354 | 0,379 | 0,377 | 0,154 | 0,377 | 0,336 | 0,153 | 0,171 | ||
F10 | 0,244 | 0,561 | 0,366 | 0,211 | 0,220 | 0,305 | 0,404 | 0,404 | 0,177 | |
FDLQI‐BRA | 0,689 | 0,825 | 0,641 | 0,564 | 0,566 | 0,564 | 0,601 | 0,576 | 0,451 | 0,628 |
FDLQI‐BRA, Family Dermatology Life Quality Index versão brasileira.
Quanto à estabilidade temporal, o coeficiente de correlação intraclasse para completa concordância foi de 0,998 (p <0,05). Já na análise da responsividade, ou sensibilidade do instrumento à mudança, houve redução dos escores de FDLQI‐BRA após instituídos tratamentos e melhora clínica da doença (p <0,01);. os valores do teste tiveram média (DP) 11 (4,6), e os valores do reteste, 4 (3,7).
A análise psicométrica do FDLQI‐BRA promoveu resultados que garantiram a validade de conteúdo, estrutural, de construto, estabilidade temporal e responsividade, indicando‐o como instrumento válido para uso clínico no Brasil.
A distribuição dos escores e a consistência interna foram similares a outras validações internacionais, o que maximiza sua interpretabilidade.2,3 Entretanto, o instrumento apresentou algumas ressalvas no comportamento de alguns itens pouco correlatos entre si, especialmente influenciados pelo efeito “chão” de alguns temas abordados, uma vez que trabalho, esporte/lazer e vida social podem não ser homogêneos na população.10
Deve ser destacado que a amostra de familiares compreendeu, em sua maioria, mulheres e mães. os dados de homens foram restritos. Além disso, como os questionários foram aplicados após consultas ambulatoriais, e não em pronto‐atendimentos e unidades de internação, foi incluída uma maioria de pacientes de leve a moderado impacto na QV. Por fim, não há outro instrumento padrão ouro para a validação de critério do tipo concorrente.7,11
Dada a dimensão do impacto das doenças dermatológicas na QV, alguns autores já demonstraram aumento na frequência de doenças psiquiátricas em pacientes dermatológicos, bem como risco aumentado de suicídio; a doença dermatológica muitas vezes pode causar maior preocupação nos indivíduos do que certas doenças sistêmicas.12
Diante disso, o entendimento, aperfeiçoamento e desenvolvimento de instrumentos de avaliação da QV são fundamentais para a prática clínica do dermatologista, para os ensaios terapêuticos e para o aperfeiçoamento das políticas educativas para a população.
Em conclusão, traduziu‐se e adaptou‐se uma versão brasileira para FDLQI, que se mostrou válida e consistente (FDLQI‐BRA).
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresMaria Laura Malzoni Souza: Concepção e o desenho do estudo; revisão crítica da literatura; levantamento dos dados; redação do artigo.
Hélio Amante Miot: Idealização do estudo, coleta dos dados, análise dos dados, escrita e aprovação do texto final.
José Eduardo Martinez: Concepção e o desenho do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; aprovação final da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Souza ML, Miot HA, Martinez JE. Translation, cultural adaptation, and validation of the Family Dermatology Life Quality Index instrument into the Brazilian Portuguese language (FDLQI‐BRA). An Bras Dermatol. 2024;99:939–42.
Trabalho realizado no Ambulatório de Dermatologia, Faculdade de Medicina, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, SP, Brasil e Prática Privada, Sorocaba, SP, Brasil.