Paciente do sexo feminino, de 46 anos, apresentava máculas violáceas assintomáticas na pele havia mais de 20 anos. A paciente era hipertensa e havia sofrido acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI) aos 38 anos; na apresentação estava em tratamento com enalapril, aspirina e rosuvastatina. Apesar desses medicamentos, ela sofreu um segundo AVCI aos 46 anos, causando disartria secundária, afasia anômica e hemiparesia do lado direito. A paciente apresentava longo histórico de enxaquecas desde a juventude e havia sofrido um aborto espontâneo. O exame físico revelou máculas reticuladas violáceas interrompidas, assintomáticas, nos braços, tronco, regiões glúteas e pernas (figs. 1 e 2).
A histopatologia em biopsia cutânea ampla e profunda mostrou múltiplas pequenas artérias com espessamento da parede, hiperplasia intimal, estenose e obliteração do lúmen, com sinais secundários de retunelamento e neovascularização na derme reticular e tecido subcutâneo (fig. 3).
Histopatologia de pele evidenciando vasculopatia oclusiva na síndrome de Sneddon. (A–B) Pequenas artérias na derme profunda e hipoderme com espessamento mural e hiperplasia intimal (Hematoxilina & eosina, 4×e 10×). (C) Detalhe da estenose e obliteração do lúmen do vaso (Hematoxilina & eosina, 40×). (D) Sinais de retunelamento e neovascularização sem vasculite (Hematoxilina & eosina, 40×).
A angiografia por ressonância magnética do cérebro revelou infartos nas áreas cerebelar frontal esquerda, parietal direita e cerebelar posteroinferior direita e sequelas parenquimatosas no território irrigado pela artéria cerebral medial direita e esquerda. O ecocardiograma e eletrocardiograma Holter de 24 horas foram normais. O tempo de protrombina foi de 65%, INR 1,38, FAN 1/80 padrão pontilhado. Os anticorpos anti‐DNA, anti‐ENA, ANCA e antifosfolípides (aPL) foram negativos. O teste de trombofilia revelou deficiência de proteína S. Foi diagnosticada síndrome de Sneddon (SS) aPL (−) com deficiência de proteína S; iniciou‐se tratamento com rivaroxabana.
A SS é vasculopatia neurocutânea subdiagnosticada que compreende artérias de pequeno e médio calibre, com incidência estimada de 4/1.000.000 casos por ano, com mediana de idade de 40 anos.1 Sua etiologia é pouco compreendida, embora tenham sido propostos mecanismos autoimunes e trombóticos. Foi descrita condição autossômica recessiva de SS com mutações no CERC1 (que codifica a adenosina desaminase 2).2
A SS é caracterizada por manifestações do sistema nervoso central (dores de cabeça, AVC múltiplos, comprometimento cognitivo), livedo racemoso persistente, hipertensão, valvopatia cardíaca e, menos frequentemente, envolvimento renal e ocular.1,3 A SS é classificada de acordo com a presença de aPL em dois grupos: SSAPL− e SSAPL+.1
Em pacientes com SSAPL−, é importante considerar outras causas de trombofilia. Em uma série recente, 27% dos pacientes submetidos a testes de trombofilia tiveram resultados positivos.4 Pacientes com SSAPL+ apresentam máculas de livedo com ramificações mais finas, maior frequência de trombocitopenia, convulsões e coreia.3,5 Pacientes com SSAPL− apresentam maior número de AVC antes do diagnóstico.4
As recomendações de tratamento diferem para pacientes com SSAPL− e SSAPL+.3–8 Para os estágios iniciais de SSAPL−, recomenda‐se monitoramento regular com imagens cerebrais e, em caso de sintomas prodrômicos, prescrição de aspirina em baixas doses. Após evento isquêmico, os medicamentos antiplaquetários são o tratamento de primeira linha.8 Para pacientes com SSAPL+, recomendações de manejo semelhantes são sugeridas inicialmente, mas no caso de trombose arterial é recomendada terapia anticoagulante.3 Essa diferença é baseada em duas séries retrospectivas.5,6 Francès et al. acompanharam 46 pacientes (19 SSAPL+ e 27 SSAPL−) por seis anos.5 Os autores destacam que entre os pacientes SSAPL+, aqueles que receberam anticoagulantes tiveram significantemente menos AVC do que aqueles em terapia antiplaquetária. Entretanto, no subgrupo SSAPL− não houve diferenças no número de AVC, independentemente da terapia.5 Bottin et al. acompanharam 53 pacientes com SSAPL− por 20 anos e não encontraram diferenças significantes em eventos isquêmicos entre essas duas terapias.6 Entretanto, a série recentemente publicada por Starmans et al. levanta questões sobre essas recomendações.4 Nesse estudo retrospectivo de 53 pacientes (14 SSAPL+ e 39 SSAPL−) com 21 anos de seguimento, alguns pacientes foram tratados com terapia antiplaquetária e alguns com anticoagulação, independentemente dos títulos de APL. Durante o seguimento, os pacientes com anticoagulação oral tiveram sobrevida livre de doença significantemente mais longa, já que o tempo até a recorrência do primeiro AVC nesse grupo foi duas vezes maior do que naquele que recebeu terapia antiplaquetária (46 vs. 26,5 meses, respectivamente). Os autores recomendam iniciar a terapia antiplaquetária e mudar para terapia de anticoagulação oral logo após qualquer episódio isquêmico recorrente.4
O presente relato de caso enfatiza que é necessário exame detalhado nesses pacientes, dado o maior risco de trombofilia concomitante. A associação entre SS e deficiência de proteína S foi relatada anteriormente.9 Além disso, o presente caso mostra que a terapia antiplaquetária pode não ser suficiente para o controle da doença em pacientes com SSAPL− (tabela 1). Dada a importância de prevenir a demência de início precoce, os anticoagulantes orais de ação direta – que demonstraram eficácia semelhante aos antagonistas da vitamina K com menor risco de hemorragia intracraniana em pacientes com AVCI e fibrilação atrial10 – devem ser fortemente considerados em pacientes SSAPL− sintomáticos.
Tratamentos e desfechos relatados em séries publicadas sobre a síndrome de Sneddon
Séries | Número de pacientes | Seguimento | Terapiaa | Desfecho |
---|---|---|---|---|
Francès et al.5 | 46 pacientes | 6 anos | SSAPL+ | 0,06 AVC por ano |
19 SSAPL+ | ACO (11) | 0,5 AVC por ano | ||
27 SSAPL− | Antiplaquetária (5) | 0,056 AVC por ano | ||
SSAPL− | ||||
ACO (10) | 0,08 AVC por ano | |||
Antiplaquetária (18) | ||||
Bottin et al.6 | 56 pacientes SSAPL− | 20 anos | Antiplaquetária (42) | 3% recorrência de AVC |
ACO (10) | 2,7% recorrência de AVC | |||
Starmans et al.4 | 31 pacientes | 28 meses | ACO | 46 meses SD |
Antiplaquetária | 26,5 meses SD |
ACO, terapia anticoagulante; SD, sobrevida da doença; SSAPL−, síndrome de Sneddon não associada a anticorpos antifosfolípides; SSAPL+, síndrome de Sneddon associada a anticorpos antifosfolípides.
Nenhum.
Contribuição dos autoresCristóbal Lecaros: Concepção e planejamento do estudo; obtenção, análise e interpretação dos dados; elaboração e redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Gabriela Coulon: Concepção e planejamento do estudo; obtenção, análise e interpretação dos dados; elaboração e redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Francisca Reculé: Concepção e planejamento do estudo; obtenção, análise e interpretação dos dados; elaboração e redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Alex Castro: Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; elaboração e redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Constanza Del Puerto: Concepção e planejamento do estudo; obtenção, análise e interpretação dos dados; elaboração e redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Lecaros C, Coulon G, Reculé F, Castro A, Del Puerto C. Inadequate response to antiplatelet therapy in Sneddon's syndrome. Time to re‐evaluate management recommendations?. An Bras Dermatol. 2024;99:780–3.
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina, Clínica Alemana, Universidad del Desarrollo, Santiago, Chile.