A prototecose é uma condição rara causada pela alga aclorofilada do gênero Prototheca. No homem, a prototecose, causada principalmente por P. wickerhamii, manifesta‐se sob três formas: cutânea, articular e sistêmica. Pode ocorrer tanto em indivíduos imunocompetentes como em imunossuprimidos, sendo muito mais comum no último grupo. É apresentado um novo caso de prototecose no Brasil em receptor de transplante renal.
A prototecose é uma infecção incomum causada pela alga aclorofilada do gênero Prototheca. Cinco espécies são conhecidas, das quais duas afetam humanos: P. zopfiie e P. wickerhamii, essa última a mais comum.
O primeiro caso de infecção humana foi descrito em 1964 como uma úlcera cutânea localizada no pé de um produtor de arroz em Serra Leoa.1 Foram relatados um pouco mais de 200 casos no mundo e dez foram descritos no Brasil.2–4 É relatado um novo caso de prototecose que ocorreu em receptor de transplante renal (RTR) no Brasil.
Relato do casoPaciente homem, 60 anos, fototipo de pele IV, natural de Caetité‐BA e morador de São Paulo‐SP havia 35 anos, relatava lesão nodular na perna direita havia seis meses (fig. 1), sem história de trauma prévio. Quanto aos antecedentes pessoais, o paciente era RTR havia 15 anos, por hipertensão arterial, e havia tratado de múltiplos carcinomas espinocelulares prévios. Já havia feito uso de ciclosporina e azatioprina. Na ocasião da infecção estava em uso de prednisona 5 mg/dia e de sirolimo 1 mg/dia havia cinco anos.
A hipótese diagnóstica inicial foi de micose subcutânea e o paciente foi encaminhado para exérese total da lesão. O material foi enviado para análise histopatológica e foi observado processo inflamatório granulomatoso com supuração e esporângios agrupados dentro do citoplasma dos macrófagos (figs. 2 e 3). Os esporângios foram corados por ácido periódico de Schiff (PAS) e Grocott e apresentavam um aspecto de mórula (figs. 4 e 5). Parte do fragmento de pele foi enviada para exame micológico e cultura para fungos, sem crescimento do agente.
No pós‐operatório, a ferida cirúrgica foi deixada cicatrizar por segunda intenção e feito curativo com algodão compressivo, inicialmente, e curativo diário com mupirocina tópica por três semanas e nitrato de prata 10% até completa cicatrização. O paciente fez tratamento com fluconazol 150 mg/dia por três meses, suspenso após a completa cicatrização da lesão.
DiscussãoAs algas do gênero Prototheca não contêm cloroplastos, organelas que apresentam o pigmento clorofila, portanto não apresentam a capacidade de fazer a fotossíntese. Necessitam de fonte heterotrófica de nutrientes, como o carbono orgânico e nitrogênio, sendo a pele o órgão mais frequentemente afetado.5
A Prototheca spp é amplamente distribuída em todo o mundo. As algas são encontradas no solo, em decomposição de plantas e água, certos itens alimentares, e elas também existem como um organismo saprófito na pele humana, unhas e tratos respiratório e digestivo.1,6
Prototheca spp. resiste ao tratamento com cloro, tratamento de esgoto e à digestão intestinal e isso contribui para sua persistência em esgotos, disseminação por animais domésticos e permanência no meio ambiente. Também é resistente à pasteurização do leite, representando um problema para o consumo de leite e de seus derivados.6
A prototecose humana é rara, contudo a incidência é maior em pacientes imunocomprometidos (corticoterapia local ou sistêmica, imunobiológicos,7 malignidades hematológicas ou câncer, diabetes mellitus, Aids, receptores de transplante de órgãos sólidos e medula, alcoolismo ou doença autoimune). Na literatura, foram descritos apenas 219 casos de prototecose humana no mundo, foram 11 relatos no Brasil,1,4 incluindo o atual. Dos casos de prototecose humana, apenas há 15 relatos em receptores de órgãos sólidos,4,7,8 nove em receptores de transplante renal e um em transplante fígado/rim. No Brasil, é o primeiro caso descrito em receptor de transplante renal.
A patogênese da prototecose é desconhecida. Na maioria dos casos a fonte da infecção é o contato exógeno com solo ou água contaminados, e comumente ocorre após a inoculação traumática. A infecção também foi descrita como uma complicação após a cirurgia.
No homem, a prototecose é causada principalmente por P. wickerhamii e se manifesta de três formas: cutânea, articular e sistêmica, com curso agudo ou crônico. A forma cutânea é a mais observada. As lesões têm evolução lenta e aparência variável: placas, pápulas, nódulos, ulcerações e erupções eczematosas. A apresentação mais comum é a lesão vésico‐bolhosa e ulceração.9 No presente caso, o paciente apresentou lesão nodular, que lembrava a feo‐hifomicose, micose por fungos demáceos, descrita nos receptores de transplante de órgão sólido.
No exame histopatológico, há infiltrado inflamatório granulomatoso, constituído por linfócitos, macrófagos, células gigantes e neutrófilos. Na coloração com PAS ou Grocott, observam‐se os esporângios, que contêm internamente esporangiosporos que podem estar dentro de macrófagos ou livres no exsudato. Os esporângios são rodeados por uma cápsula que pode variar de 7 a 30 μm; o P. zopfii tende a ser maior (7–30 μm) do que P. wickerhamii (3–15 μm).6 Uma particularidade da P. wickerhamii é exibir os esporangiosporos com um endósporo central arredondado e essa característica já foi descrita como mórula, flor de margarida ou framboesa.6 No exame histopatológico do paciente, os esporangiosporos foram mais bem evidenciados com as colorações de PAS e Grocott. Por isso, a pesquisa rotineira com colorações especiais nos casos de lesões nodulares ou nódulo‐císticas nos receptores de transplante deve ser incluída.
Atualmente, não existe um tratamento definido para a infecção pela Prototheca spp. devido à raridade da doença. A anfotericina B parece ser eficaz nos casos de infecção disseminada.5,8 Antifúngicos azólicos também são usados, embora sua eficácia seja variável.5,10 Nosso paciente teve boa resposta terapêutica com o tratamento cirúrgico e fluconazol oral, evoluiu com cicatrização adequada e não apresentou recidiva após quatro anos de seguimento.
Lesões nodulares ou nódulo‐císticas nos receptores de transplante devem ser submetidas à biópsia com a pesquisa de agente infeccioso por meio de colorações especiais (PAS, Grocott, Fite‐Faraco). A cultura para fungos e microbactérias também é recomendada. A lesão da prototecose deve ser excisada por completo e a cicatrização deixada ocorrer por segunda intenção. A complementação do tratamento cirúrgico com derivados azólicos é altamente recomendada.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresValeria Romero Godofredo: Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Milvia Maria Simões e Silva Enokihara: Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Jane Tomimori: Obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Marilia Marufuji Ogawa: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Conflitos de interesseNenhum