O líquen escleroso (LE) é doença crônica inflamatória e cicatricial de etiologia desconhecida, que acomete principalmente a região anogenital de mulheres no período pré‐pubere e pós‐menopausa.1–3 Sua real prevalência se mantém desconhecida, sobretudo pelo subdiagnóstico.4 A ausência de sintomatologia em até 39% dos casos e a omissão das queixas anogenitais pelas pacientes contribuem para esse cenário.4
Clinicamente, o líquen escleroso vulvar (LEV) se manifesta por pápulas eritematosas ou manchas marfim, por vezes hiperceratósicas, que podem coalescer formando placas. Em geral, as lesões são simétricas e acometem os pequenos e grandes lábios, períneo e a pele da região perianal. Nos estágios mais avançados, pode haver apagamento dos pequenos lábios e sepultamento clitoriano. Prurido, dor e dispareunia estão entre os sintomas mais relatados e tendem à acentuação noturna.2,4 Também podem ocorrer disúria, disfunção miccional e sangramento urinário em decorrência de fissuras.2,5 A histopatologia mostra atrofia da epiderme, hiperceratose e degeneração das células basais. Na derme papilar há fibrose densa, edema e inflamação crônica perivascular, com predomínio de eosinófilos.2
A etiologia do LEV permanece incompletamente elucidada, porém são crescentes as evidências da origem multifatorial, incluindo aspectos genéticos, autoimunes, hormonais e antecedentes infecciosos.2 A participação da autoimunidade foi proposta pela associação frequente entre o LEV e a história pessoal ou familiar de doenças autoimunes.4 Nos tecidos acometidos pelo LEV, há disfunção das células T‐reguladoras (Tregs) e baixos níveis de interleucina‐10, criando ambiente favorável à autoimunidade.4,6 Essa hipótese se fortalece pela detecção de autoanticorpos no soro de pacientes portadoras de LEV, tais como anticorpos contra a proteína da matriz extracelular 1, encontrados em cerca de 74% dos casos.1,7 Além disso, foram descritos anticorpos contra integrantes da zona da membrana basal, em especial as proteínas transmembrana BP180 e BP230, em 30% dos pacientes com LEV, sem correlação com a gravidade clínica e prurido.7,8 Até 40% das portadoras de LEV têm o domínio NC16A da BP180 como um alvo para células T circulantes.7 Recentemente, foi descrito caso de mulher de 77 anos com diagnóstico prévio de LEV e esclerodermia localizada (EL), que desenvolveu quadro de penfigoide bolhoso cujas lesões manifestaram‐se exclusivamente nos locais previamente acometidos por LEV e EL. Acreditamos que o LEV e o EL preexistentes tenham atuado como facilitadores no desenvolvimento do penfigoide bolhoso, em virtude da reatividade de células‐T à proteína BP180, frequentemente associada ao LEV, e do aumento da sinalização do tipo Th2 associada à EL.7
As doenças tireoidianas são as desordens autoimunes mais frequentemente associadas ao LEV, presentes em até 39% dos casos.4,9 A tireoidite de Hashimoto (TH) é caracterizada por hiperplasia da tireoide, infiltração de linfócitos no parênquima glandular e presença de anticorpos contra antígenos tireoidianos. É considerada a principal causa de hipotireoidismo no Brasil e acomete cerca de 2% das mulheres de todo o mundo.10 Diversos autores advogam sobre a associação entre LEV e tireoidopatias autoimunes; a autoimunidade é o provável elo entre essas afecções.1,2,4
Para a detecção de hipotireoidismo, a dosagem do hormônio tireoestimulante (TSH) é considerada o padrão ouro. Quando elevada, sugere hipofunção da glândula; a aferição da tiroxina livre (T4L) é indicada, a fim de diferenciar o hipotireoidismo evidente (T4L baixo) do subclínico (T4L normal). A presença dos autoanticorpos antiperoxidase tireoideana (anti‐TPO) e/ou antitireooglobulina identifica a TH.10 A positividade do anti‐TPO é a característica mais importante na TH, presente em cerca de 95% dos pacientes, além de ter sensibilidade de 90% no diagnóstico das doenças autoimunes da tireoide.10
O LEV atrai a atenção de dermatologistas e ginecologistas, em grande parte pelo enorme prejuízo que inflige a qualidade de vida das pacientes, além de favorecer o surgimento do carcinoma espinocelular (CEC).4
Foi conduzido estudo observacional prospectivo em um Hospital Universitário. Durante dois anos, foram selecionadas no ambulatório de doenças vulvares 63 mulheres que apresentavam em consulta sinais e sintomas típicos de LEV e, posteriormente, foi realizada confirmação histopatológica. Para a investigação, foram solicitados TSH, T4L e anti‐TPO; foram consideradas portadoras de TH as pacientes que apresentavam TSH elevado (acima do limite superior do valor de referência) associado aos T4L reduzido (abaixo do limite inferior do valor de referência) e anti‐TPO positivo. Foram excluídas do estudo todas as pacientes com diagnóstico prévio de hipotireoidismo.
O projeto foi aprovado pelo comitê de ética do Hospital Universitário em 31/07/2018, sob o número CAAE: 92818418.8.0000.565. Para a análise estatística dos dados foi utilizado teste Qui‐Quadrado e intervalo de confiança (OR), considerando‐se significância estatística p ≤ 0,05.
Foram incluídas no estudo 63 pacientes, das quais 27 (42,8%) eram brancas e 36 (57,2%) não brancas (pardas ou negras), contrastando com outros estudos em que a maior amostragem era de pacientes caucasianas, não podendo generalizar os resultados para outras etnias.9,11 A idade média foi de 59 anos, variando entre 33 e 87 anos (fig. 1), corroborando os dados de Cooper et al. e Kreuter et al., que registraram idade média de 63 e 49 anos, respectivamente.4,5,9,11
Das pacientes analisadas, 16 (25,4%) apresentavam TH, frequência maior que a encontrada na população geral, mas concordante com a literatura em se tratando de pacientes com LEV. Entretanto, o valor encontrado é discretamente maior do que nos estudos de ampla amostragem.1,2 Kreuter et al. analisaram 532 pacientes, dos quais 82 (15,4%) portavam uma ou mais doenças autoimunes, destacando‐se a prevalência de 65 (12,2%) pacientes com LE e doença autoimune da tireoide (TH ou doença de Graves), dos quais 60 eram mulheres.11 Nesse estudo, dos 396 indivíduos do sexo feminino, 322 (81,3%) exibiam o LE na região anogenital. Cooper et al., ao investigarem 190 mulheres com LEV, demonstraram que 28,4% tinham pelo menos uma doença autoimune, e 16,3% apresentavam LEV associado a doença tireoidiana autoimune, contrastando com os 9% do grupo controle saudável (p<0,001).9
Em nosso estudo, o agrupamento das pacientes de LEV e TH de acordo com a idade evidenciou que sete delas (43,8%) tinham até 59 anos e nove (56,3%) tinham 60 anos ou mais, sem diferença estatística (p=1,000) – figura 2. Quando divididas por etnia, nove pacientes (56,2%) eram brancas e sete (47,8%) eram de outra etnia, estatisticamente sem significância (p=1,714), conforme pode ser observado na tabela 1.
Relação da tireoidite com as variáveis idade, cor e estado de moradia
Tireoidite | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Sim | Não | p | OR | ||||
n | % | n | % | ||||
Idade | Até 59 anos | 07 | 43,8 | 20 | 42,6 | 1,000 | 1,037 (0,422‐2,432) |
60 anos ou mais | 09 | 56,2 | 27 | 57,4 | |||
Cor | Branca | 09 | 56,2 | 18 | 38,3 | 0,251 | 1,714 (0,731‐4,021) |
Não branca | 07 | 47,8 | 29 | 61,7 | |||
Estado | Espírito Santo | 12 | 75,0 | 40 | 85,1 | 0,286 | 0,635 (0,251‐1,602) |
Outros | 04 | 25,0 | 07 | 14,9 | |||
Total | 16 | 100 | 47 | 100 |
Os fatores limites do estudo foram o pequeno número amostral e a ausência de grupo controle. Porém, os dados obtidos corroboram a associação do LEV e as tireoidopatias autoimunes. Das 63 portadoras de LEV investigadas, 16 (25,4%) delas foram diagnosticadas com TH. A idade e a etnia das pacientes não exerceram impacto estatisticamente significante no diagnóstico. Acredita‐se que a frequente coexistência dessas doenças esteja relacionada à desregulação autoimune possivelmente comum a ambas. Não encontramos até o momento estudos que correlacionassem especificamente o LEV e a TH. As análises permitiram a sugestão de que o impacto do rastreamento de doenças autoimunes nos indivíduos portadores de LEV seja maior do que o previamente aventado, em especial a TH.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresMarcela Scárdua Sabbagh de Azevedo: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Antônio Chambô Filho: Concepção e o desenho do estudo; levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; aprovação final da versão final do manuscrito.
Lucia Martins Diniz: Redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
July Barcellos Quimquim: A concepção e o desenho do estudo; levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; obtenção, análise e interpretação dos dados; aprovação final da versão final do manuscrito.
Vickie White Loureiro Souza: Concepção e o desenho do estudo; levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; obtenção, análise e interpretação dos dados; aprovação final da versão final do manuscrito.
Luana Amaral de Moura: Redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Azevedo MSS, Chambô Filho A, Diniz LM, Quimquim JB, Souza VWL, Moura LA. Prevalence of the association of vulvar lichen sclerosis with Hashimoto's thyroiditis. An Bras Dermatol. 2024;99:445–7.
Trabalho realizado no Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil; Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Vitória, ES, Brasil; Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.