O melanoma é neoplasia cutânea potencialmente letal que requer diagnóstico preciso para garantir que o paciente receba o tratamento ideal. Apesar do advento da genômica em larga escala e de alta resolução, a análise histopatológica continua sendo o padrão ouro para diagnóstico e principal ferramenta de classificação em conjunto com as características clínicas.1
O melanoma pode apresentar variedade de padrões histopatológicos, mimetizando outros tumores malignos. Com base em suas características histopatológicas, diversos subtipos morfológicos foram descritos além das formas clássicas, como polipoide, verrucoso, desmoplásico, mixoide, de células balonizadas, rabdoide, amelanótico, spitzoide, dentre outros.2 Raramente, ainda pode ter padrões de diferenciação heteróloga, incluindo fibroblástico, músculo liso, rabdomioblástico, osteocartilaginoso, schwanniano e ganglionar. A diferenciação osteocartilaginosa é um dos padrões mais incomuns.3,4
A diferenciação osteocartilaginosa é caracterizada pela formação de osteoide, tecido ósseo e cartilaginoso a partir das células neoplásicas. Sua raridade e características de sobreposição com outras neoplasias o tornam de difícil diagnóstico, especialmente em biópsias pequenas ou quando as informações clínicas/radiológicas são limitadas (podendo ser confundido com osteossarcomas ou condrossarcomas).5
Os mecanismos responsáveis pelas diferenciações heterólogas não são bem compreendidos. Este relato descreve um caso de melanoma com diferenciação osteocartilaginosa que se desenvolveu em região distal de membro superior esquerdo.
Em agosto de 2019, mulher de 52 anos procurou o ambulatório de Ortopedia com história de lesão escurecida em região subungueal de polegar esquerdo, com evolução de aproximadamente três anos. Ao exame físico, notavam‐se edema, flogose local e sinais sugestivos de infecção fúngica. Foi submetida a tratamento específico para a infecção, porém sem resposta completa.
A lesão subungueal foi submetida à biópsia incisional, onde o estudo histopatológico e imuno‐histoquímico confirmaram o diagnóstico de melanoma. A paciente foi então encaminhada ao serviço de Cirurgia Oncológica para tratamento específico.
Em novembro do mesmo ano, após avaliação, realizou amputação do dedo acometido. A análise histopatológica confirmou o diagnóstico de melanoma, tipo nodular, com presença de invasão linfovascular e índice proliferativo de 17 mitoses/mm2. Após oito meses, notou‐se crescimento de tumoração em cicatriz cirúrgica. A tomografia computadorizada indicou lesão sugestiva de recidiva.
Foi submetida novamente à ressecção cirúrgica, com retirada da lesão em bloco. O estudo histopatológico da peça revelou recidiva local do melanoma, com presença de invasão vascular e neural, além de margem cirúrgica comprometida pela lesão. Exames de imagem no acompanhamento demonstraram presença de comprometimento axilar e presença de lesões pulmonares sugestivas de metástase.
A paciente foi encaminhada para radioterapia adjuvante local e axilar em fevereiro de 2021. Iniciou também terapia com dacarbazina e imunoterapia com pembrolizumabe em abril de 2021. No mesmo mês, apresentou novo crescimento tumoral em área de ressecção prévia. A tomografia computadorizada exibia extensa lesão expansiva/infiltrativa de partes moles em região distal do braço e mão esquerdos; decidiu‐se por cirurgia paliativa, com desarticulação cirúrgica ao nível do cotovelo e linfadenectomia axilar à esquerda, realizada em julho de 2021.
Macroscopicamente, a peça cirúrgica apresentava volumosa tumoração em região distal de membro superior esquerdo (fig. 1).
O estudo histopatológico evidenciou melanoma com áreas de diferenciação heteróloga osteocartilaginosa (figs. 2, 3 e 4), invadindo partes moles e tecidos ósseos. Margens cirúrgicas livres. O diagnóstico de melanoma foi confirmado pela positividade dos marcadores imuno‐histoquímicos: SOX10 e HMB45 (fig. 5). O esvaziamento axilar apresentou melanoma metastático para linfonodo axilar esquerdo. No estudo molecular, a pesquisa da mutação V600E no gene BRAF foi negativa.
Pela doença avançada e metastática, a paciente continuou internada, evoluindo com piora clínica, sinais de desconforto respiratório e instabilidade hemodinâmica. Sem possibilidade de terapia modificadora de doença, iniciou cuidados paliativos exclusivos, evoluindo a óbito em outubro de 2021.
A diferenciação osteocartilaginosa no melanoma foi observada pela primeira vez há mais de 45 anos,6 porém menos de 40 relatos foram publicados desde então.7,8
Padrões osteoide, condroide e mistos têm sido descritos surgindo em sítios predominantemente acrais e subungueais. Entretanto, a diferenciação osteocartilaginosa não se restringe a essas regiões, já sendo descritas em lesões de mucosa, bem como em pele exposta ao sol de maneira crônica ou intermitente.9
O mecanismo para a formação da matriz osteoide/condroide nesses melanomas é desconhecido. Muitos estão associados a história de trauma prévio local, o que pode ser forma de resposta do hospedeiro à lesão.10 Outra hipótese é que a diferenciação osteoide/condroide seja resultado do melanoma, induzindo respostas reativas nos fibroblastos estromais circundantes. No entanto, muitas vezes há falta de células estromais nas áreas de matriz, devendo esta surgir das próprias células neoplásicas.11
Fatores hipotéticos intrínsecos do melanoma que poderiam impulsionar a produção dessa matriz incluem a expressão dos genes “inibidores de atividade do melanoma” (MIA) e RUNX2, reguladores transcricionais da condrogênese e osteogênese.10
Embora esses genes possam ser expressos pela maioria dos melanomas, pesquisas já evidenciam que MIA e RUNX2 requerem a expressão de outros cofatores para conduzir a diferenciação osteoide/condroide, e a falta desses pode explicar a raridade do melanoma osteocartilaginoso apesar da expressão frequente dos genes.8
O diagnóstico de melanoma pode ser apoiado pela presença de um componente in situ, presença de pigmento de melanina ou pela positividade de marcadores imuno‐histoquímicos como S100, Melan‐A, HMB45 ou SOX10.1 Em melanomas com diferenciação cartilaginosa, o uso de S100 é limitado, pois tecidos cartilaginosos e condrossarcomas também expressam positividade.5
Na análise molecular, a presença da mutação V600E no gene BRAF também pode corroborar o diagnóstico de melanoma, além de ser fundamental para planejar seu tratamento.5
Ainda não é totalmente claro se o melanoma osteocartilaginoso abriga apenas mutações e marcadores de diferenciação típicos do melanoma ou também das lesões osteocartilaginosas que ele mimetiza.8
Com base no levantamento da literatura, destacamos a importância da confecção do painel imuno‐histoquímico com inclusão de marcadores de diferenciação melanocítica nos casos de neoplasias com diferenciação osteoide/condroide, principalmente em regiões acrais, e incluir dentre os diagnósticos diferenciais melanoma com diferenciação heteróloga. Em decorência da raridade do caso, ainda é desafiador elaborar diretrizes de diagnóstico precoce, manejo e prognóstico para essa variante de câncer.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresBennett Barroso de Carvalho: Redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; revisão crítica da literatura.
Diogo Batista dos Santos Medeiros: Participação efetiva na orientação da pesquisa; redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; aprovação final da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.