O estudo da pele, ciência da Dermatologia, perpassou por significativas transformações ao longo dos séculos. Desde as primeiras descrições das doenças cutâneas nos papiros egípcios e nos escritos hipocráticos até os primeiros tratados de Dermatologia, importantes personagens e descobertas marcaram a especialidade. Nos séculos XVIII e XIX, a Dermatologia se consolida como campo de estudo médico a partir das primeiras classificações de dermatoses, primeiros métodos diagnósticos e tratamentos medicamentosos. No século XX, a revolução científica e tecnológica transformou a prática dermatológica, incorporando novos recursos terapêuticos, procedimentos cirúrgicos e estéticos. Frente a esse processo de formação tão pujante, é importante disponibilizar uma síntese histórica para a comunidade médica reconhecer e compreender as origens que embasaram uma das especialidades de maior relevância no cenário médico atual.
As afecções cutâneas representam uma parcela significativa da quantidade global de doenças, e acometem milhões de pessoas em todo o mundo a cada ano. A Dermatologia consiste na especialidade médica responsável pelo estudo de mais de 4.000 afecções de pele e anexos cutâneos, respondendo por cerca de 15% a 30% dos atendimentos médicos ambulatoriais nos sistemas de saúde, e incorpora um amplo arsenal de recursos diagnósticos, terapêuticos e estéticos.1–3
As doenças de pele são conhecidas pela humanidade desde sua própria origem, tendo em vista que o componente essencialmente visual dessas afecções possibilitava seu reconhecimento precoce. Os primeiros registros das nosologias cutâneas remontam à Antiguidade, quando foram descritas pelas grandes civilizações que moldaram a Medicina Ocidental.4 Dos papiros egípcios emergem os primeiros cuidados com a higiene da pele, o manejo de feridas e o uso de plantas medicinais. Dos postulados de Hipócrates, “pai da Medicina”, são estabelecidos a inspeção física e o raciocínio clínico como pilares do diagnóstico médico. Romanos, árabes e bizantinos resguardam e contribuem para o desenvolvimento da Medicina por séculos, com marcantes avanços à luz do Renascimento e do Iluminismo.4,5
O estudo das doenças de pele esteve atrelado à Medicina geral durante séculos. Somente no século XVIII, impulsionados pela expansão da ciência e taxonomia dos campos do conhecimento, surgem os primeiros textos e obras dedicados especificamente ao estudo das doenças de pele.4,6 Desse período de pioneirismo, destacam‐se as contribuições das grandes escolas europeias de Dermatologia – austríaca, britânica e francesa – que, por meio das descobertas, teorias, classificações e obras de seus renomados dermatologistas, tornaram possível a consolidação desse importante campo de estudos e especialidade médica.7,8
Ao longo dos séculos XIX e XX, a revolução científica e as inovações tecnológicas transformam a Dermatologia, aprimorando técnicas diagnósticas e fornecendo novos recursos terapêuticos. A especialidade consolida‐se por meio de sociedades científicas, periódicos e congressos acadêmicos, atraindo progressivamente o interesse da comunidade médica. Ademais, a prática dermatológica expande‐se englobando uma ampla gama de procedimentos cirúrgicos, diagnósticos e estéticos.8–10
A Dermatologia passou por um intenso processo de formação e transformação históricas, acompanhando a própria evolução da Medicina contemporânea. O conhecimento das origens da especialidade, seus grandes nomes, suas descobertas e obras representa um atributo essencial para dermatologistas e residentes de Dermatologia, assim como um reconhecimento valioso perante a comunidade médica em geral. Nesse sentido, o artigo propõe uma revisão teórica acerca das origens da Dermatologia, organizada didaticamente pelos autores em cinco períodos: dermatologia primitiva, dermatologia pré‐moderna, dermatologia moderna, dermatologia científica e dermatologia tecnocientífica.
Dermatologia primitiva: as doenças de pele na AntiguidadeEgito AntigoA Medicina Ocidental teve suas origens marcadas por duas grandes civilizações da Antiguidade. A prática médica no Egito estava intimamente relacionada com a religião; os sacerdotes desempenhavam cuidados médicos em templos religiosos, e as doenças eram atribuídas à vontade dos deuses. As manifestações das doenças e os tratamentos médicos eram registrados em papiros, precursor do papel, nos quais eram descritos sinais clínicos, diagnósticos, plantas e “formulações” terapêuticas.5,11
As doenças de pele são mencionadas em diversos textos, destacando‐se os papiros Edwin Smith (1600 a.C.) e Ebers (1550 a.C.) (fig. 1). O papiro Edwin Smith, também denominado Livro das Feridas, tem sido reconhecido como um dos principais textos médicos do Egito Antigo, composto por 48 casos de lesões e ferimentos cutâneos, muitos dos quais ocorridos durante batalhas e acidentes em obras de construções egípcias. O papiro ainda abordava outros campos médicos como clínica geral, ginecologia, pediatria e até mesmo cosmiatria, mencionando prescrições rejuvenescedoras para a pele.5,8,11–13
Papiro Ebers (1550 a.C.). Fonte: The Ebers papyrus – Wikimedia Commons.13
O papiro Ebers consiste no maior documento médico da Medicina egípcia antiga, com mais de 800 capítulos abrangendo diversas enfermidades como doenças urinárias, digestivas, ginecológicas, além de afecções de pele e cabelos, como feridas, úlceras e tumores cutâneos. Descrevia ainda cerca de 1.500 fórmulas mágicas e terapêuticas. No que concerne às lesões tumorais, versava sobre tumores solitários e compostos por “filhos” – provavelmente referindo‐se às atuais metástases cutâneas. Assim como o papiro Smith, também reforçava a preocupação estética dos egípcios, por meio da descrição de ceras e óleos para a atenuação de rugas e manchas e técnicas rudimentares de peeling químico.4,5,8,14
Ademais, atribui‐se aos egípcios o uso rudimentar da fototerapia, a partir da ingestão da planta Ammi majus L, encontrada no delta do Nilo, composta por metoxaleno, substância do grupo dos psoralenos que atuava como um fotossensibilizador natural. O uso dessa planta seguido pela exposição solar constava nas prescrições do papiro Ebers e era recomendado para repigmentação.15,16
Grécia AntigaNa Grécia Antiga, a Medicina e a “arte de curar” também eram atribuídas a entidades divinas. De acordo com a mitologia grega, Esculápio era considerado o “Deus da Medicina”, tendo muitos templos dedicados à sua devoção em diversas ilhas gregas. Nesses templos, grupos de sacerdotes denominados Asclépidas cuidavam de enfermidades utilizando plantas medicinais e até mesmo lambeduras de cães para o tratamento de feridas.4,8,17
Da ilha grega de Cos surgiu um dos maiores expoentes da Medicina grega e da Medicina Ocidental, o médico e professor Hipócrates (460‐370 a.C.). Afastando‐se da compreensão metafísica do processo saúde‐doença, Hipócrates contribuiu imensamente para a racionalização do método clínico, defendendo a observação clínica como importante recurso para o diagnóstico das doenças, tornando‐se assim mundialmente conhecido como “pai da Medicina Moderna”. Na Dermatologia, especialidade cuja observação representa um atributo essencial, as contribuições hipocráticas também se mostram notáveis.4,8,18,19
Hipócrates propôs a primeira classificação das doenças da pele, dividindo as dermatoses em duas classes: doenças idiopáticas, originárias primariamente da pele; e doenças exantemáticas (exantemas), manifestações cutâneas de doenças sistêmicas ocasionadas por desequilíbrios dos humores corporais (tabela 1).20,21
Síntese das obras clássicas e as primeiras classificações das doenças dermatológicas
Autor | Obra | Modelos (critérios) | Classificações | |
---|---|---|---|---|
Hipócrates (460‐370 a.C.) | Corpus Hippocraticum(IV‐III a.C) | 2 classes(origem) | Doenças idiopáticas (originadas da pele) | |
Exantemas (manifestações de doenças sistêmicas): Phymata (furúnculos e tumores); Lopoi (erupções escamosas secas); Helchodia (lesões úmidas) | ||||
Girolamo Mercuriale (1530‐1606) | Demorbis cutaneis, et omnibus corporis humani excrementisractatus locupletissimi (1572) | 2 tipos(localização) | Doenças do couro cabeludo (tineas) | |
Doenças comuns a toda a pele (tetter): distúrbios de cor; distúrbios de textura; distúrbios de volume | ||||
Joseph Jacob Ritter von Plenck (1738‐1807) | Doctrina de Morbis Cutaneis (1776) | 14 classes(morfologia, origem e localização) | Máculas | Calosidades |
Pústulas | Excrescências | |||
Vesículas | Úlceras | |||
Bolhas | Vulneras | |||
Pápulas | Picadas de insetos | |||
Crostas | Distúrbios das unhas | |||
Escamas | Doenças do cabelo | |||
Anne‐Charles Lorry (1726‐1783) | Tractatus de Morbis Cutaneis (1777) | 2 classes(doenças – origem) | Doenças originadas da pele | |
Doenças secundárias a patologias internas | ||||
6 tipos(lesões – morfologia) | Pústulas simples | |||
Pústulas contendo um humor estranho | ||||
Úlceras | ||||
Tumores | ||||
Manchas | ||||
Escamas | ||||
Robert Willan (1757‐1812) | On Cutaneous Diseases (1808) | 8 ordens(morfologia) | Pápulas | Pústulas |
Escamosas | Vesículas | |||
Exantemas | Tubérculos | |||
Bolhas | Spots (máculas e excrescências dérmicas) | |||
Jean‐Louis Alibert (1768‐1837) | Description Des Maladies de la Peau Observées À l’Hôpital Saint‐Louis (1806) | 12 grupos(morfologia e origem) | Dermatoses heteromorfas | |
Dermatoses eczematosas | ||||
Dermatoses exantemáticas | ||||
Dermatoses discromatosas | ||||
Dermatoses micológicas | ||||
Dermatoses variolosas | ||||
Dermatoses descamativas | ||||
Clinique de l’Hôpital Saint‐Louis (1833) | 51 gêneros(origem) | Dermatoses hemáticas | ||
Dermatoses cancerosas | ||||
Dermatoses leprosas | ||||
Dermatoses escabiosas | ||||
Dermatoses espumosas | ||||
Ferdinand von Hebra (1816‐1880) | Atlas der Hautkrankeiten (1856) | 12 classes | Hiperemia | |
Anemia cutânea | ||||
Desordens de secreção | ||||
Inflamações | ||||
Hemorragias | ||||
Hipertrofias | ||||
Atrofias | ||||
Neoplasmas (neoplasias benignas) | ||||
Pseudoplasmas (neoplasias malignas) | ||||
Ulcerações | ||||
Neuroses | ||||
Parasitoses |
Fonte: Elaborado pelos autores com base na literatura22,29‐31,33,38,48,50,51.
Cerca de 100 anos após sua morte, por volta do século III a.C, os textos e as teorias de Hipócrates foram reunidos na obra Corpus Hippocraticum (fig. 2), um dos primeiros marcos históricos da Medicina e da Dermatologia. Nessa obra, a anatomia e a fisiologia da pele eram descritas detalhadamente, por meio de seus processos fisiológicos como transpiração e secreção glandular e seu papel na homeostase do organismo. Baseando‐se na teoria dos quatro humores corpóreos – sangue, fleuma, bile negra e bile amarela –, Hipócrates acreditava que as doenças dermatológicas representavam manifestações de desequilíbrios humorais.4,22
Corpus Hippocraticum (séc. III a.C.). Fonte: Hippocratic Corpus – Wikimedia Common.23
O Corpus Hippocraticum apresentava descrições de uma ampla variedade de doenças cutâneas como acne, alopecia areata, erupções escamosas, bolhosas e pustulares, que não eram reconhecidas como as nosologias atuais, e são acreditadas à etiologia humorística.4,7,22 Em relação aos tratamentos, recomendava‐se o uso de mel, alcatrão, gordura de porco e gordura de ganso como terapêuticas tópicas, pela crença de que as formulações deveriam ter efeito oposto ao processo patológico, ou seja, agentes secantes em lesões úmidas e emolientes em lesões secas, princípios até hoje adotados pela Dermatologia.20,22,23
Império RomanoNa Roma Antiga, a higiene e os cuidados com a pele ocupavam um relevante espaço no cotidiano social. As termas romanas, ou banhos públicos, destinavam‐se aos encontros sociais e aos cuidados com a saúde, em que os romanos banhavam‐se em piscinas de águas mornas e frias, as quais se acreditava terem propriedades medicinais, assim como higienizavam a pele com uso de instrumentais como o estrígel, uma lâmina curva utilizada para limpeza corporal. Durante as sessões de banho, além da limpeza cutânea, aplicavam‐se óleos corporais com o intuito de atenuar distúrbios pruriginosos e de hidratar a pele.24
Os romanos, tal como os egípcios, acreditavam que órgãos e doenças estavam associados a seus deuses, designando a cada deus uma patologia específica. Por essa mesma compreensão, atribuíam cada doença a um “médico específico”, e assim existiam médicos dedicados ao tratamento de hérnias, olhos, ouvidos e pele – esses últimos, responsáveis pela prescrição dos banhos medicinais.25,26
A despeito do enfoque médico‐religioso, ainda no auge do Império Romano iniciou‐se o processo de “cientificação” da Medicina romana. Nessa conjuntura, destacam‐se as contribuições de Aurelius Cornelius Celsus (25 a.C.‐50 d.C), por meio de sua obra De Medicina – uma enciclopédia médica moderna. Celsus dedicou um capítulo inteiro às doenças cutâneas, descrevendo cerca de 40 tratamentos para afecções dermatológicas.24,26
As primeiras descrições de diversas lesões cutâneas são atribuídas a Celsus, dentre elas os acrocórdons, o molusco contagioso e o Kerion Celsi, crostas em couro cabeludo de crianças semelhantes a favos de mel. Em grego, kerion significa favo de mel, equivalente a favus em latim.24,26
Dermatologia pré‐moderna: a inércia medieval e as primeiras classificações de doenças cutâneasDurante a Idade Média, a Europa passou por um longo período de relativa estagnação intelectual, em que as superstições e a metafísica dominaram as concepções acerca das doenças e dos cuidados médicos. A Medicina era subordinada aos desígnios da Igreja Católica, que detinha as fontes de conhecimento, como textos médicos gregos, traduzidos para o latim nos monastérios e igrejas medievais.4,8,25,27
As precárias condições de vida e a falta de higiene das sociedades medievais predispuseram a eclosão de diversas epidemias de doenças infecciosas, como a varíola que, quando não ocasionava o óbito, gerava sequelas debilitantes como cicatrizes cutâneas, desfigurações e alopecia. Nesse período, estima‐se que a hanseníase, a famigerada lepra, tenha acometido cerca de 5% de toda a população da Europa.27
Nos séculos XV e XVI, durante o Renascimento, ocorre uma intensa expansão do conhecimento e a revalorização da racionalidade grega, estimulando o aumento do interesse sobre os campos médicos, dentre eles o estudo da pele. Surgem assim as primeiras classificações das doenças dermatológicas, bem como a ampliação das noções de anatomia da pele e terapêuticas tópicas.4,6
Nesse período, destaca‐se o pioneirismo de Girolamo Mercuriale (1530‐1606), professor de Medicina na Universidade de Pádua – Itália. Mercuriale propunha que as dermatoses fossem classificadas em doenças do couro cabeludo (tineas) e doenças comuns às demais áreas da pele (tetter), essas últimas subdivididas conforme suas características morfológicas, cor, textura e volume (tabela 1). Mercuriale também é reconhecido por sua obra De morbis cutaneis, et omnibus corporis humani excrementis ractatus locupletissimi, publicada em 1572, considerada a precursora das publicações em Dermatologia.28–31
Mais de um século após Mercuriale, Daniel Turner (1667‐1741) com sua obra De Morbis Cutaneis (fig. 3), introduziu o interesse pela Dermatologia no Reino Unido, e foi considerado até o início do século XX o “pai da Dermatologia Britânica”. O tratado De Morbis Cutaneis, publicado em 1714, apresentava mais de 100 casos clínicos de doenças dermatológicas e seus respectivos tratamentos, e foi traduzido para diversas línguas e publicado em várias edições.7,32,33
Tratado “De Morbis Cutaneis”, de Daniel Turner (1714). Fonte: De Morbis Cutaneis, Londres, 1714.33
No início do século XVIII, o médico Jean Astruc (1684‐1766) revelava o pioneirismo francês na Dermatologia. Médico da corte do rei Luís XV, Astruc dedicou‐se ao estudo das doenças venéreas, publicando em 1736 o tratado De Morbis Venereis, um marco na história da Venerologia. Além disso, prestou significativas contribuições para a classificação da rosácea, a qual caracterizava em três formas: eritematosa, varicosa e descamativa.34–36
Dermatologia moderna: as contribuições das grandes escolas médicas europeiasAo longo dos séculos XVIII e XIX, o estudo da Dermatologia se intensificou na Europa, destacando‐se três grandes centros médicos e de pesquisa: Reino Unido, França e Áustria. Os dermatologistas das Escolas Britânica, Francesa e Austríaca (tabelas 1 e 2) estabeleceram as bases da ciência da Dermatologia, proporcionando descobertas, teorias e conhecimentos que até hoje reverberam na especialidade.
Os grandes pioneiros da Dermatologia e suas contribuições
Escola austríaca | |
Joseph Jacob Ritter von Plenck (1738‐1807) | Doctrina de Morbis Cutaneis – classificação de mais de 150 doenças dermatológicas em 14 grupos de dermatoses |
Primeiro a classificar as dermatoses pelas lesões primárias | |
Ferdinand von Hebra (1816‐1880) | Primeiro a classificar as dermatoses baseando‐se nos achados histopatológicos |
Atlas der Hautkrankeiten – o primeiro atlas de Dermatologia em língua alemã | |
Moritz Kaposi (1837‐1902) | Primeiro a descrever o sarcoma pigmentado múltiplo idiopático – Sarcoma de Kaposi |
Primeiro a descrever o eczema herpético, lúpus eritematoso e xeroderma pigmentoso | |
Heinrich Auspitz (1843‐1878) | Primeiro a mencionar os termos “acantoma” e “paraqueratose” |
Estabeleceu a relação entre a derme papilar e a epiderme nas lesões de psoríase, corroborando com a manobra semiológica Sinal de Auspitz | |
Paul Gerson Unna (1850‐1929) | Descrição de estruturas histológicas da pele e alterações histopatológicas das lesões cutâneas |
Die Histopathologie der Hautkrankheiten – primeira publicação dedicada à histopatologia cutânea | |
Invenção da técnica de bandagem – “bota de Unna” | |
Escola britânica | |
Daniel Turner (1667‐1741) | De Morbis Cutaneis – primeiro livro em inglês exclusivamente dedicado a doenças de pele |
Primeira série de casos em Dermatologia: reporta mais de 100 casos de doenças cutâneas | |
Robert Willan (1757‐1812) | On Cutaneous Diseases – oito ordens de dermatoses, definições precisas e organizadas |
Classificação das dermatoses por características morfológicas e sinais clínicos das lesões | |
Reconhecido como “pai da Dermatologia Moderna e da Dermatologia britânica” | |
Thomas Bateman (1778‐1821) | Practical Synopsis on Cutaneous Diseases – continuação da obra do mestre Robert Willan |
Primeiro a descrever o molusco contagioso, alopecia areata e ectima | |
Escola francesa | |
Jean Astruc (1684‐1766) | De Morbis Venereis – primeiro tratado de doenças venéreas |
Anne‐Charles Lorry (1726‐1783) | Primeiro a propor o conceito da pele como um órgão |
Tractatus de Morbis Cutaneis – classificação das doenças cutâneas segundo similaridades fisiológicas, patológicas e etiológicas | |
Jean‐Louis Alibert (1768‐1837) | Chefe da primeira escola de Dermatologia/hospital dermatológico (L’Hôpital Saint Louis) |
Propôs o conceito da “Árvore das Dermatoses” | |
Raymond Jacques Adrien Sabouraud (1864‐1938) | Contribuições para a micologia na Dermatologia – Les trichophyties humaines/Les teignes |
Inventor do meio de cultura Ágar Sabouraud |
Fonte: Elaborado pelos autores com base na literatura30‐32,42,43,48,50,51,55.
O modelo de ensino médico integrado à assistência hospitalar, adotado pelos países da Europa central, representou um campo próspero para o desenvolvimento de novos conhecimentos nas áreas de bacteriologia e histopatologia, que contribuíram enormemente para a compreensão dos processos patológicos das doenças da pele.8
Nascido em Viena, o médico austríaco Joseph Jacob Ritter von Plenck (1738‐1807) dedicou grande parte de sua vida ao estudo das doenças dermatológicas. Em 1776, publicou a obra Doctrina de Morbis Cutaneis, na qual descrevia 150 tipos de doenças cutâneas, categorizadas em 14 grupos (fig. 4), uma das primeiras classificações dermatológicas a considerar os aspectos morfológicos das lesões.8,29,30,37,38
Classificação das doenças dermatológicas por Plenck. Fonte: Doctrina de Morbis Cutaneis, Viena, 1776.38
Seguindo o pioneirismo de Plenck, ao longo do século XIX o Hospital Geral de Viena (Allgemeines Krankenhaus) tornou‐se um importante centro de pesquisa e ensino em Dermatologia, formador de grandes nomes da história da especialidade. Dentre seus dermatologistas mais famosos, merece destaque o professor universitário Ferdinand von Hebra (1816‐1880), notadamente reconhecido por seu estilo peculiar de ensinar Dermatologia que despertava o interesse de diversos estudantes.8,9,39
Durante sua carreira profissional, Hebra produziu inúmeras publicações e monografias. Todavia, adquiriu maior notoriedade a partir da publicação do primeiro atlas de Dermatologia em língua alemã – Atlas der Hautkrankeiten (1856) –, o qual introduzia os conceitos de patologia às doenças cutâneas, além de propor uma nova classificação das dermatoses baseada nos achados anatômicos e patológicos.4,8,9,30,40
Por suas valorosas contribuições, Hebra tornou‐se reconhecido nos países germânicos como o fundador da Dermatologia clássica, atraindo o interesse de toda uma geração de médicos pela especialidade, tendo como discípulos Karl Rokitansky (1804‐1878) e Carl Wedl (1815‐1891), precursores da anatomia patológica; Moritz Kaposi (1837‐1902), primeiro a descrever o Sarcoma de Kaposi; e Heinrich Auspitz (1843‐1878), criador da manobra semiológica Sinal de Auspitz, que identifica as lesões de psoríase.4,8,9,41–43
O médico alemão Paul Gerson Unna (1850‐1929) foi outro dos notáveis dermatologistas da Escola Austríaca, considerado um dos pioneiros da dermatopatologia moderna. Unna cursou dermatologia clínica em Viena e teve como professores os renomados dermatologistas Hebra, Kaposi e Auspitz, retornando a Hamburgo em 1881, onde fundou uma clínica privada que se tornou referência na formação em Dermatologia, recebendo médicos aprendizes oriundos de diversas localidades.39,44,45
Por meio das experiências em sua clínica, Unna destacou‐se por suas descobertas acerca da histologia da pele, reconhecendo os tecidos conjuntivos colágeno e elástico, estratificando as camadas epiderme e derme e definindo a camada basal como estrato regenerador da pele. Por meio de estudos em microscopia dermatológica, proporcionou o surgimento de novas técnicas de coloração e métodos histológicos (fig. 5), e foi o primeiro a descrever alterações histopatológicas como acantose, espongiose e degeneração balonizante. Em 1894, consagrou‐se pela publicação de suas descobertas no livro Die Histopathologie der Hautkrankheiten (A histopatologia das doenças de pele), um marco na história da Dermatologia.37,46 Outra de suas relevantes contribuiçõe foi a invenção da técnica de bandagem conhecida como bota de Unna, utilizada até os dias atuais para o tratamento de úlceras de estase venosa.44
Paul Gerson Unna em seu microscópio, final do século XIX. Fonte: Paul Gerson Unna – U.S. National Library of Medicine.46
Após o pioneirismo de Daniel Turner, a Dermatologia britânica fomenta‐se novamente com os estudos de Robert Willan (1757‐1812) (fig. 6). Willan atuava como médico do dispensário público Carey Street e, a partir de suas observações nos atendimentos ambulatoriais, propôs uma nova abordagem na classificação das doenças cutâneas, baseando‐se nas características morfológicas e nos sinais clínicos das lesões.7,29,47
Robert Willan, o “pai da Dermatologia moderna”. Fonte: Wikimedia Common – Robert Willan. Photograph by A. C. Cooper.47
Willan descreveu nove ordens de dermatoses: pápulas, escamosas, exantemas, bolhas, pústulas, vesículas, tubérculos, máculas e excrescências dérmicas (fig. 7). Em 1808, publicou o primeiro volume da obra On Cutaneous Diseases, primeiro livro‐texto de Dermatologia, no qual apresentava as primeiras quatro ordens de doenças: Papulae (pápula), Squamae (escama), Exanthemata (exantema) e Bullae (bolhas).29,37,48,49 Robert Willan adotava definições precisas e organizadas para as doenças da pele, utilizando termos reconhecidos até os dias atuais para a descrição das lesões elementares, por exemplo. Infelizmente, sua morte prematura impediu a finalização do segundo volume da obra, tarefa que ficou a cargo de seu aprendiz, Thomas Bateman.4,48
Ilustrações das doenças dermatológicas por Robert Willan (1808). Fonte: On Cutaneous Diseases.49
Thomas Bateman (1778‐1821) tornou‐se o grande difusor da obra de Willan, publicando em 1813 o trabalho Synopsis of Cutaneous Diseases according to the arrangement of Dr. Willan, livro com 11 edições traduzidas em cinco idiomas.7,48,50 As contribuições de Robert Willan fizeram‐no ser conhecido como o fundador da Dermatologia ocidental moderna.7
A Escola FrancesaNo século XVIII, o estudo da Dermatologia foi marcado por duas grandes obras: o tratado De Morbis Cutaneis, publicado pelo britânico Daniel Turner em 1714, e o Tractatus de Morbis Cutaneis (1777), de autoria de Anne‐Charles Lorry, médico real do monarca Luís XVI. Aluno de Jean Astruc, Anne‐Charles Lorry (1726‐1783) foi um dos primeiros dermatologistas a compreender a pele como um órgão propriamente dito, em inter‐relação com outros órgãos.29,51
Em Tractatus de Morbis Cutaneis, obra de 700 páginas escrita inteiramente em latim, Lorry apresentava noções de anatomia, fisiologia e patologia da pele e classificava as doenças cutâneas segundo similaridades fisiológicas, patológicas e etiológicas. Desse modo, subdividia as dermatoses em primárias, originárias da própria pele, e secundárias a doenças internas. Descreveu, adicionalmente, seis tipos de lesões de pele: pústulas simples, pústulas contendo um humor estranho, úlceras, tumores, manchas e escamas.29,51,52
No início do século XIX, Paris despontava como um dos grandes centros médicos da Europa, principalmente nas áreas da clínica e das doenças de pele.9 Nessa conjuntura efervescente, destacava‐se o l’Hôpital Saint‐Louis, um dos principais centros médicos de Paris, transformado em hospital dermatológico em 1801. Jean‐Louis Alibert (1768‐1837) foi o primeiro médico a se dedicar às doenças de pele no l’Hôpital Saint‐Louis, e sob sua liderança estavam os mais de 400 leitos de internação dermatológica. A partir do acompanhamento diário da evolução dos pacientes internados, Alibert traçou suas primeiras teorias sobre as doenças da pele, classificando‐as em famílias, gêneros e espécies, as quais formavam o modelo didático da “árvore das dermatoses” (fig. 8).4,7–9,53,54
Árvore das Dermatoses, de Jean‐Louis Alibert. Fonte: Coleção Le musée de l’Hôpital Saint‐Louis.54
Alibert acreditava que as doenças de pele deveriam ser consideradas parte da Medicina Interna. Em seus atlas, as afecções cutâneas eram representadas em pessoas inteiras, e não apenas na parte da pele com lesão. Baseando‐se em sua experiência, ele publicou os livros Description Des Maladies de la Peau Observées À l’Hôpital Saint‐Louis (1806) e Clinique del’Hôpital Saint‐Louis (1833), assim como as primeiras menções a micose fungoide, queloides e leishmaniose cutânea, e foi reconhecido como “pai da Dermatologia” na França.31,53
Alibert e Willan demonstravam divergências significativas em relação a suas classificações e teorias dermatológicas. As abordagens diferenciadas entre os dois dermatologistas podem estar associadas às características dos cenários médicos em que estavam imersos: Willan realizava seus atendimentos nos ambulatórios do dispensário Carey Street, entrando em contato com lesões cutâneas transversalmente, sem oportunidade de acompanhar sua evolução ao longo dos dias. Por outro lado, Alibert observava diariamente os quadros dermatológicos de seus pacientes hospitalizados, e podia identificar com maior clareza a aparência, duração e resposta das lesões às terapias instituídas.7
O dermatologista Raymond Jacques Adrien Sabouraud (1864‐1938), outro famoso discípulo do l’Hôpital Saint‐Louis, adquiriu notoriedade por seus estudos na área da micologia, na qual elucidou os aspectos etiológicos, patológicos e terapêuticos relacionados às doenças fúngicas da pele. Em 1894, reportou suas primeiras pesquisas em micologia na tese Les trichophyties humaines (As tricofitoses humanas). Posteriormente, em 1910, publicou o primeiro tratado completo sobre micologia, Les teignes (As micoses). A despeito de suas publicações, Sabouraud também se tornou internacionalmente reconhecido pelo desenvolvimento de um meio de cultura padrão para isolamento e identificação de fungos dermatófitos, o ágar de Sabouraud, composto por peptona, glicose, ágar‐ágar e água.37,54,55
Dermatologia científica: a ciência da pele e suas descobertasOs primeiros congressos e periódicos científicosO estudo da Dermatologia passou por um período de intensas transformações e evoluções no fim do século XIX, tornando‐se tão extenso que o surgimento de uma especialidade médica específica e consolidada internacionalmente mostrava‐se inevitável.8–10 Nessa perspectiva, em 1889 realizou‐se em Paris o primeiro Congresso Internacional de Dermatologia e Sifiologia, no Museu de Dermatologia do l’Hôpital Saint‐Louis (fig. 9). O Congresso teve como presidente de honra o urologista Philippe Ricord (1800‐1889), considerado o “pai” da venerologia francesa no século XIX, e como presidente o dermatologista Alfred Hardy (1811‐1893), ex‐aluno de Alibert e mais um discípulo do hospital.41,56
Dermatologistas participantes do primeiro Congresso Internacional de Dermatologia e Sifiologia – Paris (1889). Fonte: Coleção Le musée de l’Hôpital Saint‐Louis.54
Tendo como objetivo promover os conhecimentos da especialidade, ainda no século XIX surgem os primeiros periódicos especializados em Dermatologia e Venerologia. A revista científica Syphilidologie consta como a primeira publicação com interesse dermatológico, fundada em Leipzig em 1838. Posteriormente, em 1843, o jornal Annales des maladies de la peau et de la syphilis constitui‐se na primeira publicação genuinamente dedicada à Dermatologia.41
As invenções que revolucionaram a prática dermatológicaA expansão do conhecimento científico ao longo do século XX e o desenvolvimento de novos recursos diagnósticos e terapêuticos proporcionaram diversos avanços à prática dermatológica. Destacam‐se algumas das mais importantes inovações desse período:
FotografiaAo longo da história da Medicina, os casos clínicos, diagnósticos e tratamentos dos pacientes eram registrados de forma escrita por meio de anotações e prontuários médicos, assim como compartilhados entre os profissionais por meio de discussões e comunicações orais. Entretanto, as imagens – fundamentais para a assistência e o ensino em Dermatologia – dependiam exclusivamente da memória visual.57
A documentação visual das doenças cutâneas iniciou a partir de gravuras em madeira, que evoluíram para xilogravuras, gravuras em cobre multicoloridas e moulages de cera, até alcançar os registros fotográficos, com o surgimento da fotografia em 1840. Anos mais tarde, em 1865, Alexander John Balmanno Squire (1836‐1908) foi o primeiro dermatologista a aplicar a fotografia para o registro de doenças de pele. Três anos depois, Alfred Louis Philippe Hardy, chefe do serviço de Dermatologia do Hôpital Saint‐Louis, publica o livro Clinique photographique de L’Hôpital St‐Louis, uma série fotográfica dos casos clínicos dermatológicos da instituição.41,57 A partir de então, diversos atlas e livros‐texto foram publicados com registros de imagens de lesões cutâneas, propiciando conhecimento a diversas gerações de dermatologistas.
DermatoscopiaO uso de aparelhos ópticos para o diagnóstico de lesões cutâneas iniciou com a microscopia de superfície, aplicada pela primeira vez por Petrus Borrelius (1620‐1671) na observação de capilares do leito e pregas ungueais, técnica conhecida atualmente como capilaroscopia. Em 1878, o físico alemão Ernst Karl Abbe (1840‐1905) aperfeiçoou a técnica utilizando azeite de cedro como meio de contato de modo a aumentar a nitidez das imagens, protótipo da dermatoscopia de contato.10,58
O termo “dermatoscopia” é mencionado pela primeira vez por Johan Saphier, em 1920, que descrevia em seus artigos diferentes aplicações da microscopia de superfície (fig. 10), como estudo de capilares, lesões de tuberculose cutânea e sífilis, e inclusive lesões melanocíticas e seus glóbulos, às quais ainda não conseguia identificar a malignidade.10,58,59
Microscópio de superfície. Fonte: História da Dermatoscopia, Dominguez et al.10
A diferenciação entre lesões melanocíticas benignas e malignas foi descrita apenas em 1971 pela dermatologista Rona Mackie, da Universidade de Glasgow, que reportava o uso da microscopia de superfície no diagnóstico de tumores pigmentados.10,58 Atualmente, a dermatoscopia é considerada essencial para o diagnóstico de tumores cutâneos, além de outras afecções como doenças parasitárias e inflamatórias.
FototerapiaOs primeiros relatos acerca da exposição solar como recurso terapêutico nas doenças de pele remontam ao Egito Antigo, em que a planta Ammi majus L era utilizada como fotossensibilizante no tratamento do vitiligo.15,16 Entretanto, o primeiro uso da radiação UV para o tratamento de doenças dermatológicas é atribuído a Niels Ryberg Finsen (1860‐1904), médico dinamarquês que adotou a luz solar filtrada para o tratamento do lúpus vulgar em 1893. Oito anos após, em 1901, Finsen utilizou a lâmpada de arco de carbono para o tratamento do lúpus, pelo que foi premiado com o Nobel de Medicina em 1903.15,60
A radiação de UVB de banda larga foi introduzida por William Henry Goeckerman (1884‐1954) para o tratamento da psoríase, em 1923.15 Nas décadas de 1960 e 1970, surgiram as primeiras pesquisas sobre fotoquimioterapia com o uso do psoraleno (8‐MOP), tanto tópico quanto oral, como fotossensibilizante, associado à radiação UVA de alta intensidade, terapêutica denominada posteriormente como PUVA (psoralen e UVA) pelo dermatologista Thomas B. Fitzpatrick (1919‐2003).15,60
Em 1981, Parrish e Jaenicke publicam um estudo no qual afirmam que a seleção de comprimentos de onda entre 300 e 325 nm, assim como o uso de radiação monocromática em vez de ampla banda de radiações, desempenhariam efeito terapêutico mais eficaz no tratamento da psoríase, menor dano ao DNA celular e risco de eritema.61 Desde então, a radiação UVB de banda estreita provou‐se mais eficaz, disseminando‐se ao redor do mundo, sendo preferida ao PUVA.15
LasersA utilização dos lasers nos tratamentos dermatológicos teve como precursor o médico dermatologista Leon Goldman (1906‐1997), que em 1963 relatou a destruição seletiva de estruturas pigmentadas da pele – nevos, melanomas e tatuagens – por meio do uso do laser de rubi pulsado. Posteriormente, no livro Biomedical Aspects of the Laser (1967), Goldman apresentou diversas possibilidades e aplicações do laser na Medicina, e nos anos seguintes reforçou essas aplicações com o uso do laser de neodímio de onda contínua (Nd‐YAG) em malformações vasculares (1973) e hemangiomas cavernosos mistos (1976‐1977).16,62
Em 1989, o Food and Drug Administration (FDA) liberou o primeiro laser para remoção de pelos pigmentados, e em 1991, para a remoção de tatuagens.16,62 Apesar do desinteresse inicial, atualmente os lasers vêm conquistando importante espaço na Dermatologia, com amplo espectro de aplicações terapêuticas e estéticas.
CriocirurgiaO médico britânico James Arnott (1797‐1883) foi o precursor da aplicação de técnicas de congelamento como recurso terapêutico. Durante os anos de 1845 a 1851, Arnott realizava o congelamento de tumores de mama e pele por meio de soluções salinas com gelo picado (−18°/−24°C), notando assim o encolhimento das lesões, bem como a analgesia propiciada pelo gelo. Nas décadas seguintes, outras formas de congelamento foram desenvolvidas, sobressaindo‐se o uso de líquidos congelantes e gases liquefeitos.63
O primeiro emprego do oxigênio líquido (−190°C) em criocirurgia foi realizado pelo dermatologista Campbell White, de Nova York (1889), que utilizava uma haste com algodão na extremidade imersa em oxigênio líquido e depois aplicada em lesões cutâneas de herpes zoster, verrugas virais, lúpus eritematosos e carcinomas basocelulares. Apesar do fácil acesso ao oxigênio líquido, suas propriedades inflamáveis tornavam seu uso corriqueiro perigoso.63,64
Mais seguro, o nitrogênio líquido (−196°C) foi empregado clinicamente pela primeira vez para o tratamento de verrugas virais, queratoses e outras proliferações cutâneas não neoplásicas pelo médico Ray Allington.63,64 Na década de 1970, despontam diversos aparelhos criocirúrgicos com outros agentes criogênicos além do nitrogênio líquido, incluindo óxido nitroso, dióxido de carbono, argônio, cloreto de etila e hidrocarbonetos fluorados. Nos dias atuais, a criocirurgia tem sido amplamente indicada para o tratamento de lesões cutâneas benignas e malignas.63
Cirurgia dermatológicaAté meados do século XX, a prática da Dermatologia era essencialmente clínica, a maioria dos recursos terapêuticos restringia‐se ao uso de medicamentos, a biópsia da pele não se mostrava como recurso corriqueiro e a excisão de lesões cutâneas era excepcional. Nas décadas de 1950 e 1960, os dermatologistas adentraram o campo dos procedimentos cirúrgicos, com o surgimento de técnicas, publicações e recursos tecnológicos que transformaram definitivamente a Dermatologia em especialidade clínico‐cirúrgica.65
Dentre os avanços da Dermatologia na área cirúrgica, merecem destaque as contribuições do cirurgião dermatologista Frederic Edward Mohs (1910‐2002), da Universidade de Wisconsin. Em 1940, Mohs descreveu pela primeira vez uma técnica cirúrgica que tornava possível a exérese de neoplasias malignas da pele preservando a pele sã em torno da lesão. Essa técnica denominou inicialmente de “quimiocirurgia” de fixação de tecido in vivo (fig. 11). O termo “quimiocirurgia” foi adotado em decorrência do uso de cloreto de zinco para a fixação das peças. Posteriormente, em 1956, ao evidenciar a viabilidade da análise de lesões pequenas em tecido fresco, alterou‐se a nomenclatura para “excisão cirúrgica controlada microscopicamente”.65–68
Frederic Edward Mohs – Universidade de Wisconsin (1936*). *Frederic Mohs realizando o procedimento de “quimiocirurgia” (cirurgia micrográfica). Fonte: Skin Cancer Foundation.69.
A técnica de Mohs, amplamente difundida como cirurgia micrográfica de Mohs, consiste na exérese do câncer da pele incluindo tanto o tecido acometido quanto o tecido subjacente em profundidade, avaliando‐se as peças excisadas ao microscópio até que se obtenha margem livre. A cirurgia micrográfica de Mohs nasceu e se desenvolveu dentro da Dermatologia, e é reconhecida como um dos principais marcos da especialidade.65–69
Outro importante marco para a cirurgia dermatológica foi a técnica de anestesia intumescente, descrita em 1987 pelo dermatologista norte‐americano Jefrey A. Klein (1944), da Universidade da Califórnia. A técnica compreendia a infiltração subcutânea de lidocaína e epinefrina diluídas, provocando edema e tumescência na área cirúrgica, que resultava em anestesia local da pele e do tecido subcutâneo. Por meio dessa nova técnica, os procedimentos cirúrgicos ambulatoriais disseminaram‐se na Dermatologia, como biópsias e exéreses de neoplasias cutâneas, transplante de cabelo e cirurgias de hiperidrose axilar.65,70
CosmiatriaO termo cosmiatria foi reconhecido pela comunidade médica em 1959, durante o Congresso Mundial de Dermatologia em Estocolmo (Suécia), adquirindo assim, maior visibilidade entre os dermatologistas.71 Todavia, os procedimentos estéticos despertam o interesse da Dermatologia há muitos séculos. Já em 1882, Paul Gerson Unna apresentava em suas publicações as aplicações de agentes descamativos como fenol, ácido tricloroacético, resorcinol e ácido salicílico para a realização de peeling químico.72
A cosmiatria foi intensamente impulsionada na Dermatologia, a partir de 1992, pela descrição do uso da toxina botulínica para o tratamento de rugas de expressão pelo casal Caruthers (dermatologista e oftalmologista).65 A toxina botulínica é uma neurotoxina produzida pela bactéria Clostridium botulinum, agente etiológico do botulismo, doença reportada pela primeira vez em 1793 na Alemanha, após a morte de diversas pessoas por intoxicação alimentar pela ingestão de salsichas não cozidas. Por esse episódio, o médico alemão Justinus Christian Kerner (1786‐1862), o primeiro a estudar o botulismo, denominou a toxina botulínica como “veneno de salsicha” – mesma lógica adotada por Emile Van Ermengem (1851‐1932), professor da Universidade de Ghent (Bélgica), que inspirado na ideia da toxina “veneno de salsicha”, ao isolar a bactéria produtora desta em 1895, nomeou‐a de Clostridium botulinum, já que botulus significa salsicha em latim.73
No decorrer dos anos 1990, a toxina botulínica adquiriu diversas aplicações clínicas, como no tratamento de estrabismo, blefaroespasmo, espasmo hemifacial e distonia cervical. No entanto, somente no ano de 2002 o FDA aprovou seu uso estético no tratamento das rítides glabelares. Desde então, a aplicação da toxina botulínica difundiu‐se entre os dermatologistas.73
Além da toxina botulínica, outros tratamentos para o rejuvenescimento cutâneo têm adquirido espaço entre os dermatologistas, como o uso dos preenchedores. No fim da década de 1970, a Universidade de Stanford (EUA) desenvolveu o primeiro implante dérmico injetável com colágeno bovino (Zyderm I®), aprovado pelo FDA em 1981 para preenchimento de tecidos moles.72 Entretanto, por ser uma substância heteróloga, o colágeno bovino demonstrava potencial antigênico, com efeito de curta duração.74
Por isso, preenchedores sintéticos demonstraram maior segurança e tempo de duração mais prolongado. O ácido hialurônico, um polissacarídeo linear composto por cadeias de glicosaminoglicanos, tem sido reconhecido como padrão‐ouro para a correção de rítides faciais, perda de contorno e reposição de volume facial. O primeiro ácido hialurônico aprovado pela FDA para uso estético foi o Restylane®, em 2003, seguido por diversas outras formas nas décadas seguintes.72,74
Outro importante preenchedor, o ácido poli‐l‐láctico – polímero de moléculas de ácido láctico com ação bioestimuladora sobre o colágeno – foi aprovado pela FDA pela primeira vez em 2004, indicado para correção de lipodistrofia associada ao HIV, denominado comercialmente como Sculptra®. Cinco anos mais tarde, foi autorizado para uso em tratamentos estéticos, e é indicado atualmente para melhora de flacidez cutânea, correção volumétrica, depressões cutâneas, cicatrizes atróficas e alterações decorrentes de lipoatrofia.75,76
Dermatologia tecnocientíficaDesde o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000, as tecnologias de informação e comunicação (TICs) têm revolucionado as interações sociais e o compartilhamento de conteúdo. Assim como impactaram as formas de comunicação, essas tecnologias também podem contribuir imensamente para a ampliação do acesso aos serviços de saúde e para o fomento de pesquisas científicas.77 Além das TICs, a nanociência – o estudo de partículas em escala atômica ou molecular – tem proporcionado novas perspectivas acerca do uso de substâncias e medicamentos em escala nanométrica, proporcionando maior especificidade, meia‐vida e capacidade de penetração nos tecidos.78,79 Desse modo, as TICs e a nanociência representam novas perspectivas relevantes para a prática dermatológica.
TeledermatologiaA telemedicina é um recurso tecnológico que torna possível a transferência de informações em saúde com finalidades diagnóstica, terapêutica e de educação permanente de profissionais.79 A telemedicina pode apresentar diversas aplicações nos serviços de saúde, como teleconsultorias, telecirurgia, teleducação, videoconferências e o telediagnóstico.80
O caráter essencialmente visual da prática dermatológica torna‐a um campo propício aos recursos da telemedicina, que nessa área tem sido denominada especificamente de teledermatologia. A teledermatologia revela variadas possibilidades de aplicação, como consultas dermatológicas à distância, triagem de casos clínicos atendidos referenciados pela atenção primária, e em atividades educacionais como treinamento de residentes, suporte a outras especialidades e educação médica continuada.81,82
Dentre as possibilidades da teledermatologia, ressalta‐se o telediagnóstico, que pode ser realizado por meio de captura e transmissão de fotografias digitais (macroscopia) e/ou dermatoscopia digital (com ou sem luz polarizada).81,82
A primeira experiência no uso da teledermatologia ocorreu na Somália em 1992, durante a missão “Restoring Hope” do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Por meio da captura de imagens das lesões de pele dos combatentes e envio com auxílio de satélite portátil (fig. 12), os soldados obtiveram assistência dermatológica de dermatologistas norte‐americanos, mesmo a milhares de quilômetros de distância. Nos anos seguintes, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos expandiu os atendimentos prestados pelo serviço de teledermatologia para outras zonas de combate, utilizando tanto assistência assíncrona, por meio de captura de imagens com posterior avaliação dermatológica, quanto videoconferências entre combatentes e dermatologistas.83,84
Sistema de rádio por satélite do exército norte‐americano na Somália – Operação Restoring Hope (1992). Fonte: Restoring Hope – History Division – United States Marine Corps.84.
A partir dessas experiências, a literatura e o interesse sobre a teledermatologia intensificou‐se ao longo dos anos 2000 e 2010.83 Com a ampliação do acesso às redes sem fio e de telefonia móvel, as perspectivas e pesquisas na área da teledermatologia demonstram que esse é um campo eminente a ser explorado pelos dermatologistas nas próximas décadas.
NanotecnologiaA nanotecnologia consiste no estudo de partículas menores que 100nm, equivalente a um bilionésimo de metro. Partículas com dimensões tão reduzidas demonstram propriedades únicas, que revelam diferentes possibilidades para a área médica.85 O físico Richard Feynman (1918‐1988) é considerado o “pai da nanotecnologia”, em razão de suas ideias de manipulação de moléculas e átomos ainda na década de 1950. No entanto, somente em 1974 o termo “nanotecnologia” foi citado pela primeira vez pelo professor Norio Taniguchi (1912‐1999), da Tokyo Science University.78
Na Dermatologia, a nanomedicina tem adquirido significativo interesse por parte das indústrias cosmética e farmacêutica, tendo em vista as propriedades farmacológicas oferecidas por essa tecnologia, possibilitando o aumento da biodisponibilidade de substâncias nos tecidos, seletividade de ação e liberação lenta, assim como melhorando a textura e cosmética de medicamentos, fotoprotetores, emolientes, dentre outras terapêuticas tópicas.78,85
A despeito de suas possibilidades, a nanomedicina apresenta riscos que precisam ser mais bem elucidados. Dentre esses, o risco de toxicidade causado pela maior disponibilidade de substância nos tecidos, e o potencial oncológico em decorrência da deposição de nanopartículas nos tecidos corporais.85 Independente dessas controvérsias, a nanomedicina sem dúvida ainda tem muito a contribuir com a Dermatologia.
Considerações finaisO estudo da pele e suas doenças passou por intensas transformações ao longo de sua história, propiciando novos conhecimentos, diagnósticos, técnicas, teorias, classificações e tratamentos que ampliaram as perspectivas da especialidade. Das prescrições dos papiros Ebers e Smith, passando pelos primeiros tratados de Dermatologia de Robert Willan e Jean‐Louis Alibert, até os avanços tecnológicos dos séculos XX e XXI, ocorreram importantes marcos históricos para a ciência da Dermatologia, os quais merecem ser destacados e reconhecidos por todos aqueles que pretendem ingressar nesse vasto e rico campo médico.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresIago Gonçalves Ferreira: Concepção e/ou delineamento do estudo; revisão de literatura e seleção de artigos; análise de conteúdo; análise de resultados; redação preliminar e redação final.
Magda Blessman Weber: Concepção e/ou delineamento do estudo; revisão de literatura e seleção de artigos; análise de conteúdo; revisão preliminar e redação final.
Renan Rangel Bonamigo: Concepção e/ou delineamento do estudo; revisão de literatura e seleção de artigos; análise de conteúdo; revisão preliminar e redação final.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Ferreira IG, Weber MB, Bonamigo RR. History of dermatology: the study of skin diseases over the centuries. An Bras Dermatol. 2021;96:332–45.
Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia, Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre and Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Porto Alegre, RS, Brazil.