A hipertricose é definida como crescimento desproporcional de pelos em áreas do corpo que não sofrem ação dos hormônios androgênios, foge dos padrões da etnia, faixa etária e sexo.1 De acordo com a idade de início, é classificada em congênita ou adquirida e, segundo a extensão de acometimento, localizada ou generalizada. Entre as causas de hipertricose generalizada adquirida, é descrita a hipertricose relacionada à droga. Os agentes mais frequentemente envolvidos são fenitoína, ciclosporina e minoxidil. Ao contrário do hirsutismo, a hipertricose em crianças pré‐púberes não se relaciona com endocrinopatias subjacentes, tem como principal fator desencadeante efeitos adversos de medicações.2
O presente relato de caso destaca essa associação, ilustra uma apresentação clínica muito exuberante relacionada ao uso da ciclosporina A (CsA).
Paciente feminina, branca, seis anos, com história de síndrome nefrótica há 5 anos, em uso de CsA, por apresentar resistência à corticoterapia isolada. Com a piora recente da proteinúria, a nefrologia pediátrica optou por aumentar a dosagem da CsA para 5 mg/kg/dia. Três meses após, a criança desenvolveu aumento difuso de pelos terminais na face, tronco, membros (figs. 1 e 2) e tricomegalia (crescimento excessivo dos cílios) (fig. 3), quando foi encaminhada ao departamento de dermatologia.
O perfil hormonal solicitado estava inalterado, bem como ultrassonografia de abdome, foi descartada clínica e laboratorialmente a hipótese de hirsutismo. Não foram identificadas alterações oculares, na cavidade oral e o desenvolvimento neuropsicomotor da criança era normal. Entretanto, o nível sérico de CsA revelou‐se aumentado (467 ng/mL; Valor de referência: 150‐300 ng/mL). Diante dos achados descritos, chegou‐se ao diagnóstico de hipertricose generalizada adquirida relacionada à droga (CsA). Como medidas terapêuticas, foram propostas redução da dosagem diária da medicação e epilação química temporária.
A ciclosporina é um imunossupressor, inibidor da calcineurina, cujo mecanismo de ação é inibir seletivamente a função dos linfócitos T auxiliares (CD4+), com consequente bloqueio da produção de interleucinas, sobretudo IL‐2.3 É amplamente usada na dermatologia, inclusive no tratamento da psoríase e dermatite atópica,4 e ainda em outras especialidades, como na síndrome nefrótica esteroide‐resistente. Entre os principais efeitos adversos da medicação de interesse dermatológico destacam‐se hipertricose, hiperplasia gengival, aumento da incidência de neoplasias cutâneas e infecções.5
A patogenia da hipertricose induzida por ciclosporina não é bem estabelecida, porém a literatura descreve que se trata de um efeito colateral dose‐dependente, mais observado em crianças, nos primeiros seis meses de uso da droga.2 A criança do presente relato já vinha em uso de longa data da CsA, porém apresentou o quadro de hipertricose generalizada circunstancialmente, quando foi identificado aumento importante da ciclosporinemia.
Xu et al. advogam que a CsA induz a fase anágena e inibe a fase catágena do folículo piloso e demonstraram em modelo animal que a droga estimula o crescimento do pelo ao promover a proliferação de células da matriz, além de aumentar a expressão de fatores de crescimento tais como o fator de crescimento do endotélio vascular (VEGF).4 Por outro lado, Ponticelli et al. atribuem essa reação adversa do medicamento a uma possível indução no aumento da atividade da enzima alfa‐redutase, responsável por converter androgênios em di‐hidrotestosterona nos tecidos.5
Outras alterações da unidade pilossebácea, como hiperplasia sebácea, ceratose pilar e acne, são descritas e, provavelmente, resultam da eliminação da droga pelas glândulas sebáceas, visto que é uma medicação lipofílica.5 Entretanto, a paciente do caso não apresentou manifestações cutâneas além da exuberante hipertricose.
A hipertricose droga‐induzida é reversível com a suspensão do medicamento, pode levar de meses a anos para a resolução completa do quadro, a depender do ciclo do pelo da área afetada (face: em torno de três meses; braços em torno de um ano).1 Sobre a condução do caso relatado, a nefropediatria optou por reduzir a dosagem da droga até ser alcançada normalização do nível sérico da ciclosporina, resultou em melhoria do quadro cutâneo, porém preferimos associar epilação química temporária até completa resolução do quadro dermatológico, visto que a criança sofria bullying, por conta de sua aparência clínica.
Em pacientes transplantados renais ou nefropatas que fazem uso de ciclosporina pode‐se optar pela substituição da CsA por tacrolimus, tendo em vista que ambas agem de forma semelhante e essa última causa menos anormalidades cutâneas, além de não desencadear hiperplasia gengival.5
Diante do descrito, o caso relatado ilustra um quadro exuberante de hipertricose induzida por ciclosporina que, apesar de ser um efeito adverso bem documentado, é pouco observado por dermatologistas.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresKarilena Fernandes Souza: Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Paulo Fernando Barbosa de Camargo Andrade: Análise estatística; aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Flávia de Freire Cassia: Aprovação da versão final do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Maria Cristina Ribeiro de Castro: Aprovação da versão final do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Conflitos de interesseNenhum.
À doutora Marcela Gomes Pinheiro, por encaminhar a paciente ao departamento de dermatologia e, gentilmente, auxiliar na condução e resolução do caso.