A hanseníase, doença infecciosa de período de incubação prolongado, tem, em seus contatos domiciliares, um importante meio para a manutenção da endemia. Caracteriza‐se por uma síndrome clínica dermatoneurológica que apresenta elevado potencial de provocar incapacidades físicas e deformidades, além de seus impactos sociais e psicológicos.1,2
Ainda é considerada como relevante problema de saúde pública na maioria dos estados brasileiros, apesar dos esforços do Ministério da Saúde na tentativa de controlar a infecção.1 No ano de 2018, foram notificados 208.619 casos novos no mundo; o Brasil é o 2° país com maior prevalência da doença, registrando um total de 28.660 casos novos, representando 13,3% do total global de novas ocorrências.3
Os contatos domiciliares apresentam alta vulnerabilidade para o desenvolvimento da doença em virtude da exposição prolongada ao bacilo no ambiente domiciliar. Esse risco é cerca de 5‐10 vezes maior em famílias com um caso da doença, e aumenta em até 10 vezes em situação de mais de um caso no mesmo domicílio.2
Em regiões de alta endemicidade, a vigilância de contatos torna‐se uma medida imprescindível para o controle da hanseníase. Assim, recomenda‐se a avaliação dermatoneurológica pelo menos uma vez ao ano, por pelo menos cinco anos, em todos os contatos domiciliares; após esse período, esses contatos deverão ser esclarecidos quanto à possibilidade de surgimento, no futuro, de sinais e sintomas sugestivos de hanseníase.4,5
Em 2017, o município de São Luís (MA) foi classificado como regular em relação à proporção de contatos examinados, pois examinou 51,58% dos contatos registrados, fato considerado preocupante.6 Nesse sentido, conhecer a ocorrência de casos de hanseníase diagnosticados por exame entre os contatos domiciliares no referido município poderá trazer contribuições valiosas tanto para a prática laboral dos profissionais de saúde quanto aos usuários assistidos pela Estratégia Saúde da Família (ESF).
Este trabalho é um estudo epidemiológico, descritivo, retrospectivo de delineamento transversal, cujo objetivo foi estudar a ocorrência de casos de hanseníase entre contatos domiciliares dos casos notificados no município de São Luís (MA), no período de 2010 a 2017, por meio de informações colhidas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), fichas de notificação e prontuários dos pacientes (n=182).
Os dados foram analisados no programa EPI‐INFO, versão 7 (CDC‐Atlanta). Calculou‐se a prevalência de hanseníase entre os contatos examinados e, em seguida, as frequências absoluta e relativa para a análise descritiva. Este estudo faz parte do macroprojeto intitulado Abordagem Integrada de Aspectos Clínicos, Epidemiológicos (espaço‐temporais), Operacionais e Psicossociais da Hanseníase em Município Hiperendêmico do Maranhão (INTEGRAHANS MARANHÃO), aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com parecer 2.508.780.
A figura 1 mostra que, no período do estudo, foram registrados 17.309 contatos domiciliares; 9.387 foram examinados e 182 foram diagnosticados com hanseníase, com uma prevalência de 193,9/10.000 contatos. No início da série histórica, foram observados 3,52% de casos notificados de hanseníase entre contatos, correspondendo ao percentual mais alto. No ano de 2011, houve declínio do percentual para 2,20%. Observou‐se que os anos de 2012, 2014, 2015 e 2016 foram os períodos que apresentaram os maiores declínios, e nos anos de 2013 e 2017 verificaram‐se percentuais semelhantes.
A tabela 1 apresenta as características sociodemográficas dos contatos domiciliares diagnosticados com hanseníase. Observou‐se maior frequência na faixa etária de 15‐59 anos (63,74%), sexo feminino (56,59%), cor parda (58,79%) e Ensino Fundamental incompleto (26,37%).
Características sociodemográficas dos contatos domiciliares diagnosticados com hanseníase. São Luís (MA), 2010‐2017
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Idade | ||
0 a 6 anos | 11 | 6,04 |
7 a 14 anos | 44 | 24,18 |
15 a 59 anos | 116 | 63,74 |
60 a 100 anos | 11 | 6,04 |
Raça/cor | ||
Branca | 40 | 22,00 |
Preta | 30 | 16,49 |
Amarela | 01 | 0,54 |
Parda | 107 | 58,79 |
Não registrado | 04 | 2,18 |
Sexo | ||
Masculino | 79 | 43,41 |
Feminino | 103 | 56,59 |
Escolaridade | ||
Analfabeto | 07 | 3,85 |
1 a 4 série incompleta do Ensino Fundamental | 30 | 16,50 |
4 série completa do Ensino Fundamental | 09 | 4,95 |
5 a 8 série incompleta do Ensino Fundamental | 48 | 26,37 |
Ensino Fundamental completo | 09 | 4,95 |
Ensino Médio incompleto | 23 | 12,63 |
Ensino Médio completo | 34 | 18,68 |
Ensino Superior incompleto | 05 | 2,75 |
Ensino Superior completo | 03 | 1,64 |
Não se aplicaa/Não registrado | 14 | 7,68 |
Total | 182 | 100 |
Fonte: SINAN, 2019.
Na tabela 2 estão listadas as características clínicas; 48,90% eram da forma dimorfa; houve predomínio do grau de incapacidade no início do tratamento igual a grau zero (64,06%) e baciloscopia não realizada (53,28%). Quanto ao número de lesões e nervos afetados, a maioria apresentava até cinco lesões (87,16%) e nenhum nervo afetado (59,34%).
Características clínicas dos contatos domiciliares diagnosticados com hanseníase – São Luís (MA), 2010‐2017
Variáveis | n | % |
---|---|---|
Forma clínica | ||
Indeterminada | 27 | 14,87 |
Tuberculóide | 52 | 28,57 |
Dimorfa | 89 | 48,90 |
Virchowiana | 10 | 5,49 |
Não classificado | 4 | 2,20 |
Grau de incapacidade | ||
0 | 117 | 64,06 |
1 | 47 | 26,00 |
2 | 08 | 4,45 |
Não registrado | 10 | 5,49 |
Baciloscopia | ||
Positiva | 11 | 6,07 |
Negativa | 74 | 40,65 |
Não realizada | 97 | 53,28 |
Número de lesões | ||
Até 5 lesões | 155 | 87,16 |
6 a 10 lesões | 15 | 8,26 |
> 10 lesões | 07 | 3,84 |
Não registrada | 05 | 2,74 |
Número de nervos afetados | ||
Nenhum | 108 | 59,34 |
1 a 4 | 53 | 29,14 |
> 04 | 19 | 10,43 |
Não registrado | 02 | 1,09 |
Total | 182 | 100 |
Fonte: SINAN, 2019.
Na figura 2 é possível visualizar que a forma clínica dimorfa foi predominante em todos os anos, com exceção do ano de 2012, em que 50% dos casos eram da forma tuberculoide. Observou‐se, também, que nas formas indeterminada, tuberculoide e virchowiana houve uma variação dos percentuais no decorrer dos anos de 2010 a 2017.
A prevalência de contatos com hanseníase foi superior aos resultados de pesquisa similar realizada em São Luís (MA).2 A alta prevalência encontrada está diretamente relacionada à baixa cobertura da ESF em São Luís, que é de apenas 34,67%. Municípios com baixa cobertura do programa podem limitar as ações das equipes da ESF, especialmente, no que se refere às ações de vigilância e controle dos contatos.7
A faixa etária predominante (15‐59 anos) é uma questão preocupante, pois abrange pessoas em idade jovem e produtiva com repercussões negativas para o mercado de trabalho e a economia do país, familiar e individual.8 Destaca‐se, ainda, que 30,2% dos casos novos de hanseníase diagnosticados entre os contatos examinados eram crianças e adolescentes com menos de 15 anos, o que configura grande preocupação epidemiológica em relação ao controle da doença no município.
O baixo nível de escolaridade encontrado pode relacionar‐se ao déficit de entendimento sobre a doença e suas particularidades e, consequentemente, na demora em buscar assistência adequada nos serviços de saúde, dificultando o diagnóstico, a adesão e o tratamento da doença.9
A forma clínica dimorfa indica diagnóstico tardio e falhas nas ações desenvolvidas na Atenção Básica para tal fim. Outros estudos nacionais encontraram resultados semelhantes, em que as formas multibacilares prevaleceram sobre as paucibacilares.1,2,4,10
Observou‐se predominância do grau zero de incapacidade física; entretanto, registraram‐se casos com grau 1 e 2. Verificou‐se que há uma contradição entre o predomínio da forma clínica dimorfa e o grau zero de incapacidade física – esse fato pode ser atribuído à ausência de preparo e/ou experiência para a realização da avaliação do grau de incapacidade ou alguns problemas técnicos ou operacionais durante o envio dos dados para o SINAN.
O estudo apresentou limitações referentes ao uso de dados secundários, em decorrência de possíveis erros ou incompletude de informações nos prontuários, fichas de notificação e SINAN. As características sociodemográficas e clínicas encontradas neste estudo refletem o caráter negligenciado da hanseníase e a precariedade das ações voltadas para a detecção precoce entre os contatos, evidenciado pela elevada taxa de prevalência de hanseníase entre contatos domiciliares e pela forma clínica dimorfa predominante.
Suporte financeiroEste trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA) (processo n° 01347/17).
Não houve envolvimento da(s) fonte(s) de financiamento nos processos de seleção do desenho do estudo, na coleta, análise e interpretação dos dados, na redação do relatório e na decisão de enviar o artigo para publicação.
Contribuição dos autoresAruse Maria Marques Soares: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do conteúdo; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Rita da Graça Carvalhal Frazão Corrêa: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; revisão crítica do manuscrito.
Kezia Cristina Batista dos Santos: Aprovação da versão final do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica do manuscrito.
Ivan Abreu Figueiredo: Aprovação da versão final do manuscrito; revisão crítica do manuscrito.
Maria de Fátima Lires Paiva: Aprovação da versão final do manuscrito; revisão crítica do manuscrito.
Dorlene Maria Cardoso de Aquino: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Soares AMM, Corrêa RGCF, Santos KCB, Figueiredo IA, Paiva MFL, Aquino DMC. Leprosy cases diagnosed by contacts examination in a hyperendemic capital city of northeastern Brazil. An Bras Dermatol. 2021;96:510–3.
Trabalho realizado na Universidade Federal do Maranhão, São Luís, Maranhão, MA, Brasil.