O carcinoma espinocelular (CEC) é a neoplasia mais frequente em pacientes transplantados (TX), nos quais é mais agressiva e com pior prognóstico.1,2 Nos pacientes transplantados renais, especificamente, observa‐se a ocorrência de CEC sobre ou próximo a fístulas arteriovenosas (FAV), estando elas ativas ou não. Dois mecanismos são relatados: resposta imune prejudicada pela sobrecarga do sistema linfático do membro e, facilitação de tumores relacionados ao HPV secundários ao trauma cirúrgico pela confecção da fístula, punções repetitivas e exérese de múltiplos tumores.3 Além disso, 3,7% a 5% de pacientes em diálise desenvolvem isquemia do membro, levando a estresse oxidativo que pode potencializar fatores carcinogênicos para o desenvolvimento do CEC.3 Após o transplante renal, muitos pacientes permanecem com FAV, iniciando o uso de imunossupressores. Essas medicações adicionam um risco de até 100 vezes para o desenvolvimento do CEC.4–6 Há também maior suscetibilidade ao vírus HPV, com achado de DNA do vírus em 80% dos CEC nos imunossuprimidos.6
Dados da literatura mostram grande incidência de tumores de pele nos transplantados renais, porém não há estudos que analisam se a fístula tem influência no desenvolvimento do tumor. Assim, este estudo se propõe a realizar o relato de três casos de CEC próximos a fístulas mostrando seus desafios, além de analisar a ocorrência desses tumores, evidenciando se essa associação ocorre verdadeiramente ou não.
Materiais e métodosForam escolhidos três casos operados pela Dermatologia da Unicamp no período de 2020 a 2022. Foram selecionados também 118 pacientes que realizam seguimento com a Nefrologia e Dermatologia para coleta de dados do prontuário, divididos em grupos de antecedente de fístula: nunca teve, inativa ou ativa. Para os pacientes com histórico de fístula (inativa ou ativa), este membro superior foi escolhido para análise; naqueles que nunca tiveram fístula, o membro superior foi escolhido aletoriamente. O teste de post‐hoc foi executado para averiguar as comparações múltiplas entre os grupos de status de antecedente de fístula. Em seguida, optou‐se por agrupar os pacientes com fístula ativa e inativa para comparar com pacientes que nunca tiveram fístula com o teste Mann‐Whitney. Todas as análises foram realizadas no software R.
ResultadosRelato de casosPaciente do sexo masculino, 68 anos, TX renal (2011) com tumor de 5,0×4,0 cm no antebraço esquerdo sobre FAV inativa. No intraoperatório, observou‐se vaso da fístula inativa em íntimo contato com o tumor (figs. 1 e 2).
Achados histológicos do tumor da figura 1 (cortes em parafina, Hematoxilina & eosina). (A) Neoplasia em contato próximo com vasos derivados da fístula. (B) Fístula arteriovenosa desligada retirada durante a exérese.
Paciente do sexo masculino, 69 anos, TX renal (2009) com tumor de 3,5×3,0 cm no antebraço esquerdo próximo à FAV ativa (fig. 3).
Paciente do sexo masculino, 64 anos, TX renal (2017) com tumor de 1,3×1,0 cm no antebraço direito, distalmente à FAV ativa (figs. 4 e 5). Realizado ultrassom Doppler de alta frequência (fig. 4) com tumor distando 0,6 cm da FAV ativa. Exérese realizada após desligamento da FAV pela Vascular.
Histologia do tumor da figura 4 (cortes em parafina, Hematoxilina & eosina. (A) Neoplasia exofítica, com superficialização das papilas, abundante material córneo, como as verrugas (provável papel do HPV, pela imunossupressão). (B) Núcleos atípicos, embora alguns se destaquem mais pelo grau de hipercromasia. Presença de mitoses atípicas (seta amarela).
Foram estudados 118 pacientes (25 mulheres e 93 homens). Do total, 80 pacientes eram imunossuprimidos (68%) por transplante renal, hepático ou cardíaco e 38 não eram (estes realizavam seguimento na Nefrologia por outras doenças renais). Foram considerados 236 membros superiores com 159 pacientes que nunca tiveram fístula (67%), 43 com fístula inativa (18,2%) e 34 com fístula ativa (14,4%). Foram contabilizados 164 CEC, com média de 0,69 (mín. 0; máx. 10). A média de CEC nos braços com fístula foi de 1,03; 0,69 com fístula inativa; e 0,62 nos que nunca tiveram fístula.
Ao comparar a ocorrência de lesões entre os três grupos de status da fístula, não foi encontrada significância estatística (ativa×inativa p=0,925; ativa×nunca p=0,0548; inativa×nunca p=0,0543).
Considerando que ter fístula (ativa ou não) seria o fator de risco e que os resultados de valores de p da análise anterior foram próximos da significância estatística, os pacientes com antecedente de fístula foram agrupados e comparados com aqueles que nunca tiveram, randomizando a escolha de um dos braços. Desse modo, encontrou‐se significância estatística com p=0,023, demonstrando que ter tido fístula é fator de risco para a ocorrência do CEC.
DiscussãoA ocorrência de CEC muito próximo às FAV pode ser um desafio para o tratamento pelo dermatologista, exigindo abordagem multidisciplinar com a Cirurgia Vascular para o desligamento da fístula quando autorizado pela Nefrologia. Considerando os casos acompanhados no ambulatório, incluindo os relatados neste trabalho, percebeu‐se maior frequência de CEC nos membros que têm ou tiveram fístula ativa. A literatura já mostrava que a fístula poderia ser fator de risco, porém não há avaliação estatística na literatura.
A amostra demonstrou que o antecedente de FAV é fator de risco para o desenvolvimento de CEC no membro (p=0,023). A alteração da pele causada por esse fator de risco, de maneira semelhante à exposição UV, é acumulada pelos anos de trauma da diálise e sobrecarga linfática, e não reversível, uma vez que mesmo que a fístula não funcione mais, o paciente continua sob risco de desenvolver CEC naquele membro.
Isso demonstra que é preciso atenção à formação de tumores nesse local, com tratamento precoce das lesões pré‐neoplásicas e neoplásicas, além de reforçar e educar o paciente sobre a necessidade de proteção solar.1
ConclusãoPaciente imunossuprimidos necessitam de seguimento próximo pelo alto risco de desenvolver CEC. Deve‐se ter ainda mais atenção nos casos de pacientes que tiveram FAV, estando ela ativa ou não, pelo fator de risco demonstrado neste estudo.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresAriany Tomaz de Aquino Saran Denofre: Concepção e o desenho do estudo; levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; redação do artigo; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura.
Thais Helena Buffo: Concepção e o desenho do estudo; revisão crítica do conteúdo intelectual importante; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; aprovação final da versão final do manuscrito.
Rafael Fantelli Stellini: Obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Maria Leticia Cintra: Obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Renata Ferreira Magalhães: Obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Denofre ATAS, Buffo TH, Stelini RF, Cintra ML, Magalhães RF. Is arteriovenous fistula a risk factor for squamous cell carcinoma? Evaluation at a University Hospital. An Bras Dermatol. 2024;99:730–4.
Trabalho realizado na Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil.