Hiperzinquemia e hipercalprotectinemia são doenças inflamatórias raras causadas por mutação no gene PSTPIP1, com desregulação no metabolismo da calprotectina, que é uma proteína quelante de zinco com propriedades antimicrobianas e pró‐inflamatórias. Reportamos o caso de uma mulher de 20 anos com úlceras cutâneas persistentes, compatíveis com pioderma gangrenoso, déficit de crescimento e anemia crônica, que levaram ao diagnóstico de hiperzinquemia e hipercalprotectinemia. Sugere‐se a dosagem de zinco e calprotectina em casos compatíveis.
Hiperzinquemia e hipercalprotectinemia (Hz/Hc) é uma desordem autoinflamatória caracterizada por inflamação sistêmica crônica, lesões cutâneas, artralgia/artrite, hepatoesplenomegalia, pancitopenia e déficit de crescimento, descrita em 1985.1 Sua causa está relacionada com uma mutação no gene “proline‐serine‐threonine phosphatase‐interacting protein 1” (PSTPIP1), a qual acarreta uma desregulação no metabolismo da calprotectina. Essa proteína tem capacidade quelante de zinco e apresenta atividade antimicrobiana e pró‐inflamatória. Raros casos, sobretudo com detalhamento dos aspectos dermatológicos, foram descritos na literatura e nenhum é proveniente da América Latina (tabelas 1 e 2).2–4
Relatos de casos de Hz/Hc descritos na literatura com avaliação dermatológica1,3,4
Relatos prévios | Relato Atual | ||||||||
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Idade ao diagnóstico | 18 | 18 | 9 | 14 | 35 | 21 | 10 | 5 | 20 |
Sexo | M | M | F | M | F | M | F | M | F |
Crescimento | Reduzido | Reduzido | Reduzido | Reduzido | Normal | Normal | Reduzido | Reduzido | Reduzido |
Hepatoesplenomegalia | – | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim | Sim |
Alterações dermatológicas | PG | Vasc | Não | Não | Vasc, eczema | Vasc, úlceras | PG | Lesões pálpebras | PG |
Alterações reumatológicas | – | Artrite | Artrite | Artrite | Artrite, uveíte | Artrite | Artrite | Artrite | Artrite |
PCR (< 10 mg/L) | – | 41–143 | 100–200 | 22 | 17 | 45–146 | 60 | 108 | 35 |
Hemoglobina (g/L) | – | 8 | 9 | 10,9 | 12,5 | 8 | 5,5 | 7,6 | 7,3 |
Zinco (10–18μm/L) | 120–197 | 180–200 | 82–96 | 160–200 | 175 | 77 | 183 | 152 | 138 |
Calprotectina (< 0,001 g/L) | – | 6,5 | 1,4–2,55 | 9 | 6,1 | 1,5 | 12,5 | 2,3 | 0,6 |
PCR, proteína C‐reativa; PG, pioderma gangrenoso; Vasc, vasculite.
Resumo das características clínicas dos casos de Hz/Hc com alterações cutâneas relatadas
Característica | Valor |
---|---|
Idade ao diagnóstico (anos)a | 18,1 (8,7) |
Sexo | |
Feminino | 3/7 (43%) |
Masculino | 4/7 (57%) |
Hepatoesplenomegalia | 6/6 (100%) |
Déficit de crescimento | 5/7 (71%) |
Artrite | 6/6 (100%) |
Anemia | 5/6 (83%) |
Hemoglobina (g/L)a | 8,2 (2,1) |
Zinco sérico (μm/L)a | 153,4 (35,4) |
Calprotectina (g/L)b | 4,9 (1,5–6,1) |
Mulher de 20 anos relatava lesões cutâneas ulceradas persistentes com gravidade oscilante havia 5 anos, dor abdominal recorrente com episódios de diarreia e dores articulares em joelhos acompanhadas de edema e eritema local desde a infância. Relatava anemia crônica não responsiva a diversos tratamentos. No exame físico, apresentava baixa estatura (percentil <3%), úlceras de bordas violáceas, entremeadas por tecido cicatricial e pústulas, com centro granuloso friável, sangrante, presença de exsudato purulento e crostas hemáticas que acometia, pálpebras inferiores, mamas e pernas, além de hepatoesplenomegalia pronunciada (fig. 1A, 1B e 1C). O exame histopatológico das lesões cutâneas mostrou‐se inespecífico, porém compatível com pioderma gangrenoso (PG). Exames iniciais revelaram pancitopenia, inversão do padrão albumina/globulina (0,55; normal: 1,9–1,63), proteína C‐reativa elevada (PCR=35; normal: <10mg/L) e hepatoesplenomegalia à ultrassonografia, revelaram parênquima preservado com hematopoiese extramedular na histopatologia de biópsia hepática. Apresentava hipertensão portal com varizes esofágicas e osteoporose pronunciada com fratura patológica em T12.
Considerando a hipótese diagnóstica de Hz/Hc, foram feitas dosagens séricas de zinco e calprotectina, obtiveram‐se os valores de 869μg/L (normal: 70–120μg/L) e 642μg/L (normal: <1,6μg/L), respectivamente.
Foram iniciadas ciclosporina A (3,5mg/kg/dia) e prednisolona (1,5mg/kg/dia), evolui com cicatrização das lesões, ganho de peso e melhoria parcial da anemia, porém a resposta terapêutica piorou após regressão dos níveis de imunossupressão, evoluiu com o agravamento de lesões preexistentes e a formação de lesão ulcerada no ponto de feitura da biópsia hepática transcutânea, compatível com patergia (fig. 1D, 1E e 1F). Os níveis de imunossupressão foram restaurados e foi associado adalimumabe 40mg quinzenalmente, com melhoria significativa, porém parcial, das lesões cutâneas.
Em estudo genético da paciente encontrou‐se a variante c.748G>A p. (Glu250Lys) no éxon 1 do gene PSTPIP1, em heterozigose. Essa variante substitui um ácido glutâmico por uma lisina no códon 250da proteína traduzida, que foi descrita como patogênica no banco de dados Infervers e Clinvar (rs28939089) quando associada à síndrome de PAPA (MIM 604416).
DiscussãoA Hz/Hc é uma rara condição autoinflamatória caracterizada clinicamente por lesões cutâneas inflamatórias pustulosas e ulcerativas, artrite recorrente, hepatoesplenomegalia, pancitopenia e déficit de crescimento, sem predileção por sexo, geralmente diagnosticada na juventude. A doença apresenta achados laboratoriais característicos, como níveis séricos extremamente altos do zinco e principalmente da calprotectina (500–12.000 vezes os níveis normais).3
A calprotectina é formada por um complexo de duas proteínas MRP8/14, ativadores endógenos do receptor Toll‐like 4 (TLR‐4) e pertencentes à família das alarminas. É encontrada no citoplasma de neutrófilos e apresenta intensa atividade pró‐inflamatória.5,6 Recentemente, identificaram‐se nesses pacientes mutações específicas com alteração de um único aminoácido na PSTPIP1, proteína associada ao citoesqueleto responsável pela ativação de células T e liberação de IL‐1b. Outras mutações nesse mesmo gene já foram associadas a outras doenças autoinflamatórias, como a síndrome PAPA (artrite piogênica, PG e acne), com algumas semelhanças clínicas com a Hz/Hc, porém nenhuma apresentava níveis tão elevados de calprotectina e zinco.2
Até o momento, nenhum tratamento mostrou‐se totalmente eficaz, com relatos de uso de corticosteroides, ciclosporina, tacrolimus, inibidores de TNF e IL‐1. A Hz/Hc é uma doença multissistêmica com sintomatologia inespecífica, porém crônica, e já se apresenta desde a infância na maioria dos casos.2,4–7 Os níveis extremamente elevados de zinco e calprotectina séricos favorecem fortemente o diagnóstico, portanto devem ser considerados em casos suspeitos.
As alterações cutâneas na Hz/Hc foram relatadas como vasculite, eczemas, úlceras furunculoides e lesões necróticas, porém ressalta‐se que tendem a ser inflamatórias, ulceradas, por vezes pruriginosas, com clínica e histopatologia semelhantes ao PG, tendem a acometer extremidades inferiores simetricamente, com relatos de lesões faciais, particularmente nas pálpebras. A observação de tais lesões crônicas em crianças e adultos jovens com hepatoesplenomegalia, artralgia/artrite, PCR elevado e anemia microcítica devem levar à suspeita diagnóstica de Hz/Hc.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresLudimila Oliveira Resende: Elaboração e redação do manuscrito.
Marilia Formentini Scotton Jorge: Elaboração e redação do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Juliano Vilaverde Schmitt: Participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Conflitos de interesseNenhum.
Como citar este artigo: Resende LO, Jorge MFS, Schmitt JV. Extensive pyoderma gangrenosum‐like lesions revealing a case of hyperzinquemia and hypercalprotectinemia: when to suspect it? An Bras Dermatol. 2019;94:713–6.
Trabalho realizado no Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Botucatu, SP, Brasil.