Calcifilaxia ou arteriolopatia urêmica calcificante é uma complicação rara e grave secundária à doença renal crônica (DRC) em estágio tardio.1 É observada em 1% a 4,5% dos pacientes em diálise, especialmente hemodiálise, e sobretudo em mulheres.2 O hiperparatireoidismo (HPT) secundário à nefropatia leva a alterações no metabolismo de cálcio (Ca) e fósforo (P) e é o principal fator etiológico.
Relata‐se um caso de paciente do sexo feminino, 50 anos, com história de lesão cutânea dolorosa com 10 dias de evolução (fig. 1), logo seguida de úlcera necrótica em membros inferiores, portadora de DRC secundária à diabetes mellitus e hipertensão arterial, em diálise peritoneal havia cinco anos. Exame dermatológico evidenciou placas eritêmato‐violáceas, irregulares, recobertas ao centro por úlceras de aspecto necrótico entre 5 e 10cm, no terço distal dos membros inferiores (fig. 2). A investigação laboratorial revelou aumento de P, Ca, paratormônio (PTH) e fosfatase alcalina, anemia e hipoalbuminemia. O exame histológico da borda de uma úlcera mostrou discreto infiltrado inflamatório perivascular superficial e focos de depósito de Ca no subcutâneo e na parede vascular, confirmado pela coloração de Von Kossa (fig. 3). A radiografia das pernas revelou calcificações vasculares na topografia das artérias poplítea e tibial posterior, além de leve aumento difuso da densidade das partes moles. Calcifilaxia foi diagnosticada com base nos achados clínicos, radiológicos e histopatológicos. Iniciou‐se tratamento com dieta hipofosfatêmica e ajustes na diálise para correção de Ca, P e PTH, analgesia e curativo com cloranfenicol 1% nas úlceras. Com a falência do tratamento clínico, optou‐se por desbridamento cirúrgico e antibioticoterapia com amoxicilina com clavulanato de potássio. Devido à pobre resposta, o antibiótico foi substituído por cloridrato de vancomicina. A despeito dessa conduta, houve aumento da área necrótica e a condição clínica se deteriorou, levou a paciente a óbito por choque séptico.
A calcifilaxia está associada com alterações do metabolismo do Ca e P em decorrência do HPT secundário à DRC.3 Nesse contexto, déficit de calcitriol e anormalidades dos receptores de Ca e vitamina D favorecem a hipersecreção de PTH e progressão da doença. Fatores de risco incluem obesidade, diabetes, doença hepática, uso de corticoide sistêmico e produto Ca × P acima de 70mg/dL.1
Raramente existem casos descritos em paciente sem disfunção renal. Devem‐se descartar neoplasias malignas, hepatopatia grave, doença inflamatória intestinal e HPT primário.4
A etiopatogenia não é totalmente estabelecida e há calcificação e obstrução dos vasos sanguíneos de pequeno e médio calibre da derme, hiperplasia da túnica íntima e média, necrose septal e/ou lobular do subcutâneo que levam à isquemia distal e a úlceras necróticas.2 Comprometimento isquêmico sistêmico como infarto agudo do miocárdio, acidente vascular encefálico, isquemia mesentérica e obstruções arteriais periféricas também pode ocorrer.4
Lesões cutâneas são descritas como máculas eritematovioláceas semelhantes a livedo reticular, dolorosas, que progridem para placas ou nódulos subcutâneos eritematosos com periferia violácea. Podem evoluir para necrose central e ulceração, sem tendência à cicatrização espontânea, com predileção pelos membros inferiores.4 Locais como mama, glúteos e abdome podem ser afetados, com pior prognóstico.5
O diagnóstico é dado com bases clínica e laboratorial e pode ser confirmado por histopatológico. Achados laboratoriais incluem aumento de PTH, Ca, P, fosfatase alcalina, creatinina, produto Ca × P e anemia. Devem‐se descartar vasculites, lúpus eritematoso sistêmico, síndrome do anticorpo antifosfolípide e púrpura de Henoch‐Schönlein.2
Recomenda‐se normalização dos níveis séricos de Ca, P e PTH por meio de dieta hipofosfatêmica, quelantes de P isentos de Ca, calcimiméticos, tiossulfato de sódio.4 Controle da dor com analgesia rigorosa e antibioticoterapia sistêmica, se necessário.1 A paratireoidectomia é reservada para HPT grave e refratário.5 O tratamento local das úlceras se baseia em curativos oclusivos com fibrinolíticos e antibióticos, desbridamento cirúrgico e até câmera hiperbárica.2
A mortalidade atinge 80% dos pacientes e sepse é a principal causa de óbito, como ocorreu no presente caso.3 Assim, é importante enfatizar a necessidade de ser conhecida pelos dermatologistas e nefrologistas, pois reconhecer os fatores de risco e empregar medidas preventivas diminui a ocorrência da doença. Caso não consiga evitá‐la, o tratamento precoce é decisivo para redução da mortalidade e melhor prognóstico.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresMaria Carolina Ribeiro Braga: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados, revisão crítica da literatura.
Susana Strougo: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura.
Enoï Guedes Vilar: Participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Sandra Maria Barbosa Durães: Aprovação da versão final do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Conflitos de interesseNenhum.