Trichophyton benhamiae (T. benhamiae) é dermatófito zoofílico emergente, importante agente causador de dermatofitose em várias partes do mundo. É transmitido principalmente pelo porquinho‐da‐índia (Cavia porcellus), e sua identificação é realizada por métodos moleculares e proteômicos, além dos morfológicos.
Relatamos o primeiro caso de tinea corporis em criança residente no Rio de Janeiro, Brasil, transmitida por porquinho‐da‐índia.
Paciente do sexo feminino, branca, 10 anos, hígida. Há duas semanas apresentava múltiplas lesões discretamente pruriginosas no colo, região submandibular, antebraço esquerdo e região escapular direita, variando de 2‐6cm de diâmetro (fig. 1). Há um mês convive com porquinho‐da‐índia, inicialmente sadio, mas que desenvolveu ferida na pele após 10 dias.
O exame micológico direto das escamas da pele evidenciou hifas hialinas septadas e artroconídios (fig. 2). Trichophyton benhamiae foi isolado e identificado por seus aspectos macro e micromorfológicos (fig. 3 A‐D) e pela análise proteômica (MALDI ToF‐MS, Biomerieux, nível de confiança 99,9%).
Trichophyton benhamiae. (A) Macromorfologia da colônia evidenciando superfície bege‐amarelada, aveludada, crescimento radial. (B) Verso da colônia, amarelo brilhante. (C e D) Micromorfologia com hifas hialinas septadas, ramificadas e microconídios arredondados e piriformes, agrupados em cacho ou dispostos lateralmente e na extremidade das hifas. Lactofenol‐azul de algodão (100× e 400×).
A paciente iniciou tratamento com terbinafina oral, 250mg/dia, por quatro semanas, com resolução completa das lesões (fig. 4). O animal foi tratado pelo veterinário com clotrimazol creme, aplicado duas vezes ao dia por duas semanas, com melhora do quadro.
Trichophyton benhamiae, descrito pela primeira vez por Ajello e Cheng em 1967,1 é um fungo dermatófito zoofílico que vem ganhando protagonismo mundial nos últimos 20 anos.2
O primeiro caso de infecção em seres humanos foi publicado em 2002, no Japão.3 Desde então, foram relatados casos na Alemanha e em outros países da Europa, bem como na China e nas Américas. Sua prevalência vem aumentando, sobretudo na Alemanha, Suíça e Japão.4 Frati et al., em estudo suíço recente que analisou a prevalência de dermatófitos em diferentes animais, mostraram que T. benhamiae foi o dermatófito mais prevalente em porquinhos‐da‐índia, encontrado em 48 de 50 animais,5 dados confirmados em outro estudo de prevalência na Alemanha.4
Além do porquinho‐da‐índia, a transmissão pode ocorrer por meio de outros animais – p. ex., pequenos roedores, coelhos, gatos, cachorros, porco‐espinho.2,6,7 O primeiro e único caso de tinea corporis causado por T. benhamiae relatado no Brasil foi transmitido por gato.8
Berlin et al. concluíram, em estudo de prevalência e fatores de disseminação do T. benhamiae, que os porquinhos‐da‐índia podem ser carreadores assintomáticos: 92,7% dos animais colonizados não apresentavam nenhuma lesão aparente.4
Clinicamente, as lesões têm caráter inflamatório, pelo fato de não estarem adaptados ao parasitismo humano, manifestando‐se na forma de tinea faciei, tinea corporis, tinea barbae, tinea capitis, kerium celsi e tinea unguium.2,8 Acomete, principalmente, crianças e adolescentes pelo contato direto com os animais domésticos, mas também pode surgir em adultos jovens e nos pacientes imunossuprimidos.
A identificação do fungo é feita pelas características morfológicas, associada a técnicas proteômicas e moleculares.2,4,9 A cor amarelada observada no exame macromorfológico da colônia sugere Microsporum canis; no entanto, a micromorfologia é mais sugestiva de T. mentagrophytes, evidenciando microconídios arredondados ou ovalados, agrupados ou implantados lateralmente nas hifas. É importante a suspeição pelo técnico do laboratório para a correta identificação da colônia, confirmando por meio das características moleculares ou proteômicas, como no caso relatado.2,10
O tratamento de escolha para casos extensos é terbinafina oral. Nas lesões isoladas, indica‐se terapia tópica com azóis, terbinafina ou ciclopiroxolamina, com excelente resposta.2
O clínico deve estar atento a novas espécies de fungos como agentes etiológicos de micoses cutâneas, especialmente em crianças, pela atual diversificação de animais domésticos em contato com humanos. O técnico de laboratório precisa estar preparado para suspeitar e identificar novas espécies de fungos como agentes etiológicos das micoses cutâneas, em especial as infecções causadas por T. benhamiae, sobretudo quando a identificação morfológica habitual não for tão característica. Cabe ao veterinário orientar os tutores de animais para a possibilidade de transmitirem micoses cutâneas para os que têm convívio com os mesmos.
A integração de diferentes especialidades com o laboratório de apoio é valiosa para o desfecho favorável do paciente.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresCristiana Ludwig Schneider Longo: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do artigo; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual na conduta propedêutica e terapêutica do caso; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Flávio Marcondes Hercules: Obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Fábio Silva de Azevedo: Obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura.
Adriana Lúcia Pires Ferreira: Obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa, revisão crítica da literatura.
Rosane Orofino‐Costa: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do artigo; obtenção, anãlise e interpretação dos dados, participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Longo CLS, Hercules FM, Azevedo FS, Ferreira ALP, Orofino‐Costa R. Tinea corporis caused by Trichophyton benhamiae: report of the first case transmitted by guinea pig in Brazil. An Bras Dermatol. 2024;99:475–9.
Trabalho realizado no Consultório Particular, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.