A avaliação dos contatos domiciliares de casos de hanseníase possibilita o diagnóstico precoce de novos casos.
ObjetivoAssociar os resultados do teste ML Flow com características clínicas dos casos e verificar sua positividade nos contatos domiciliares, além de descrever o perfil epidemiológico de ambos.
MétodosEstudo prospectivo com todos os pacientes diagnosticados durante um ano, virgens de tratamento (n=26) e seus contatos domiciliares (n=44) em seis municípios do noroeste paulista (Brasil).
ResultadosHouve predomínio de homens 61,5% (16/26); 77% (20/26) acima de 35 anos; 86,4% (22/26) multibacilares; 61,5% (16/26) com baciloscopia positiva e 65,4% sem deficiência física (17/26). O ML Flow foi positivo em 53,8% (14/26) dos casos e se associou aos que tiveram baciloscopia positiva e foram diagnosticados como multibacilares (p <0,05). Entre os contatos domiciliares, mulheres e com idade> 35 anos foram 52,3% (23/44); a maioria havia sido vacinada com BCG ‐ bacilo de Calmette‐Guérin 81,8% (36/44). Houve positividade do ML Flow em 27,3% (12/44) dos contatos domiciliares – todos conviveram com casos multibacilares; sete com casos de baciloscopia positiva e seis com indivíduos consanguíneos.
Limitações do estudoDificuldade no convencimento dos contatos para realizar a avaliação e coleta de material.
ConclusãoO teste ML Flow, quando positivo nos contatos domiciliares, pode auxiliar na identificação dos casos que necessitam de acompanhamento mais atento da equipe de saúde, pois indica predisposição para a doença, em especial quando são contatos domiciliares de casos multibacilares, com baciloscopia positiva e consanguíneos. O ML Flow auxilia ainda na correta classificação clínica dos casos de hanseníase.
O Brasil é um dos poucos países do mundo a não atingir o patamar de eliminação da hanseníase, ou seja, prevalência inferior a 1 caso/10 mil habitantes.1 Para o alcance da meta de controle da hanseníase da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde (MS), uma das ações efetivas é a vigilância de contatos, que tem por finalidade a descoberta de casos novos entre aqueles que convivem ou conviveram, de maneira prolongada, com o caso novo de hanseníase diagnosticado.2
As pessoas que têm convívio e contato com os doentes estão expostas a um risco 3,8 vezes maior de adoecer quando comparadas com a população geral,3,4 e os contatos domiciliares de casos multibacilares (MB) representam um grupo caracterizado por alta exposição ao bacilo.5 Portanto, do ponto de vista epidemiológico, uma das atividades fundamentais para evitar o aumento da transmissão da hanseníase é o exame de contatos, o qual poderia aumentar o diagnóstico e a cura da doença de maneira mais precoce.4
O exame clínico dermatoneurológico e a baciloscopia positiva ainda são considerados soberanos para a definição do diagnóstico da hanseníase. Embora a baciloscopia auxilie no diagnóstico da doença, ela apresenta baixa sensibilidade, principalmente nas formas paucibacilares (PB), podendo apresentar também negatividade em alguns pacientes MB em decorrência de procedimentos inadequados de coleta, coloração, leitura e pela possibilidade de o bacilo não ser evidenciado nos sítios de coleta.6,7
O sorodiagnóstico amplia o rol de exames laboratoriais que colaboram no diagnóstico da hanseníase. O antígeno glicolipídio fenólico‐1 (PGL‐I) é o principal glicolipídio antigênico do Mycobacterium leprae, produzindo anticorpos das classes IgG (imunoglobulina do tipo G) e IgM (imunoglobulina do tipo M), relacionados com a atividade da doença e forma clínica.8,9 A detecção de anticorpos IgM ao glicolipídio fenólico I (PGL‐I) no sorodiagnóstico é o melhor teste padronizado para hanseníase.
O ML Flow se apresenta como teste rápido e de fácil execução para a detecção de anticorpos da imunoglobulina M para o PGL‐I do M. leprae. Assim como outros testes sorológicos, o ML Flow não é considerado padrão‐ouro para o diagnóstico, mas pode ser usado como ferramenta complementar para classificação clínica após o diagnóstico inicial,10 definição e monitoramento de terapia medicamentosa, risco de recidiva e na seleção dos contatos com maior risco de adoecer.11–13
Este estudo teve como objetivo associar os resultados do teste ML Flow no caso índice com sua classificação clínica, verificar a frequência dos resultados positivos ML Flow no contato domiciliar e traçar o perfil epidemiológico dos casos e seus contatos domiciliares.
MétodosO estudo foi realizado em seis municípios da região noroeste do estado de São Paulo, que serão designados como municípios I, II, III, IV, V e VI, que totalizam uma população de 574.151 habitantes. Dentre os municípios selecionados, cinco deles apresentam prevalência considerada média a muito alta pelo MS (1,0 a 19,99 casos/10 mil habitantes)14 e são considerados municípios prioritários de acordo com a relação do Programa de Controle da Hanseníase 2016.15
O estudo abrangeu todos os novos casos com diagnóstico de hanseníase, virgens de tratamento ao longo de um ano, no período de outubro de 2018 a outubro de 2019, e seus contatos domiciliares.
Foram selecionados apenas os casos virgens de tratamento, uma vez que após o início do tratamento a tendência é a diminuição da carga bacilar e dos anticorpos da classe IgM. Considerando que o teste de escolha do estudo foi qualitativo, isso poderia interferir em sua sensibilidade.
Para a caracterização do perfil do caso índice e seus contatos domiciliares, foi realizada a análise de prontuários clínicos existentes nas unidades de saúde e entrevista, por meio de formulários específicos, com dados sociodemográficos.
Nos casos índices, a coleta da amostra de sangue para realização do teste ML Flow foi realizada no momento da entrevista, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Os contatos domiciliares foram convidados por meio telefônico, com agendamento prévio do local, data e horário para coleta, de acordo com a conveniência do contato domiciliar, do serviço e do profissional. No caso de não comparecimento, uma nova ligação e agendamento eram realizados, respeitando, para a coleta de todos os dados da pesquisa, o prazo máximo de 60 dias após o diagnóstico do caso índice.
Todos os contatos domiciliares foram submetidos a exames dermatológicos e avaliação neurológica simplificada (ANS). A coleta de sangue para realização do teste ML Flow foi realizada após autorização e assinatura do TCLE.
Após coletada, a amostra de sangue, em ambos os casos, foi encaminhada ao Laboratório de Referência, o Centro Regional do Instituto Adolfo Lutz de São Jose do Rio Preto, com a guia preenchida conforme fluxo previamente estabelecido. Foi utilizado o procedimento operacional padrão do Instituto Adolfo Lutz para coleta e armazenamento de amostra biológica. O procedimento para realização do teste ML Flow, bem como a interpretação dos resultados, foram seguidos conforme descritos na bula do teste por Buhrer‐Sekula et al., 2003.16
Os resultados foram inseridos em planilha Excel e analisados no programa estatístico EPI INFO.7, software desenvolvido pelo Center for Diseases Control and Prevention (CDC). Verificou‐se a frequência das variáveis estudadas e, para verificar associação entre as variáveis, utilizou‐se o teste exato de Fisher; foram considerados significantes os valores de p ≤ 0,05.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Adolfo Lutz, com Parecer: 2.118.254.
ResultadosDurante o período estudado, foram coletadas amostras de sangue de 26 novos casos índices de hanseníase nos seguintes municípios: um caso nos municípios I e VI, cinco no II e 19 casos no município V. Os municípios III e IV não coletaram amostras no período do estudo. Esses novos casos originaram 61 contatos domiciliares, dos quais foram entrevistados 44 (72,3%), além da realização da coleta de sangue e do exame dermatoneurológico. Houve exclusão de 17 (27,7%) contatos: sete não foram possíveis de localizar (endereço e telefone disponíveis incorretos ou mudança de cidade), quatro recusaram‐se a participar da pesquisa e seis, apesar de quatro contatos telefônicos e dois agendamentos, não compareceram ao local (tabela 1).
Distribuição da frequência dos dados sociodemográficos dos casos de hanseníase e seus contatos domiciliares
Dados sociodemográficos | Caso (n=26) | Contato domiciliar (n=44) | ||
---|---|---|---|---|
n | % | n | % | |
Gênero | ||||
Masculino | 16 | 61,5 | 21 | 47,7 |
Feminino | 10 | 38,5 | 23 | 52,3 |
Idade | ||||
0 a 15 | 1 | 3,8 | 10 | 22,7 |
16 a 35 | 5 | 19,2 | 11 | 25,0 |
36 a 55 | 8 | 30,8 | 14 | 31,8 |
Acima de 55 | 12 | 46,2 | 9 | 20,5 |
Escolaridade | ||||
Analfabeto | 1 | 3,8 | 1 | 2,3 |
Fundamental incompleto | 17 | 65,5 | 18 | 40,9 |
Fundamental completo | 3 | 11,5 | 5 | 11,4 |
Ensino médio | 4 | 15,4 | 14 | 31,8 |
Ensino superior | 1 | 3,8 | 4 | 9,1 |
Pós‐graduado | ‐ | ‐ | 2 | 4,5 |
Estado civil | ||||
Solteiro | 5 | 19,2 | 19 | 43,2 |
Casado | 12 | 46,2 | 18 | 40,9 |
Separado/divorciado | ‐ | ‐ | 2 | 4,5 |
Viúvo | 2 | 7,7 | 1 | 2,3 |
União consensual | 7 | 26,9 | 4 | 9,1 |
Situação trabalhista | ||||
Empregado | 14 | 53,8 | 22 | 50,0 |
Desempregado | 6 | 23,1 | 17 | 38,6 |
Aposentado/licença saúde | 6 | 23,1 | 5 | 11,4 |
Situação moradia | ||||
Casa própria | 17 | 65,4 | 37 | 84,1 |
Alugada | 9 | 34,6 | 7 | 15,9 |
A média de idade foi de 49,3 anos (DP=18,3) para o caso índice e 40,4 anos (DP=29,4) para o contato domiciliar. A média encontrada foi de 2,35 (DP=1,54) contatos para cada caso.
Em relação a saneamento básico e água encanada, 100% das residências eram abastecidas pelos serviços das redes municipais.
Tanto nos casos índices (19/26) quanto nos contatos domiciliares (25/44) houve predomínio de pessoas de pele branca. Em 50% (13/26) dos casos de hanseníase entrevistados, a renda familiar era de até dois salários‐mínimos.
Em 46,2% (12/26) das residências moravam quatro pessoas, e em 59,1% delas havia até quatro cômodos. O tempo médio de moradia dos contatos com os casos foi em média de 14 anos (DP=10,58), e 88,6% dos contatos domiciliares não conviveram, nos últimos 10 anos, com outros casos de hanseníase fora do domicílio e nunca moraram com outra pessoa com a mesma doença (tabela 2).
Distribuição da frequência das características dos contatos domiciliares e resultado do teste ML Flow
Situação contato | ML Flow contatos | Total | Valor‐pa | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Positivo | Negativo | |||||
n | % | n | % | n (%) | ||
Tempo de convivência com doente na mesma casa | ||||||
Menos de cinco anos | 5 | 11,4 | 6 | 13,6 | 11 (25,0) | 0,46 |
Cinco anos ou mais | 6 | 13,6 | 17 | 38,7 | 23 (52,3) | |
Sem informação | 1 | 2,3 | 9 | 20,4 | 10 (22,7) | |
Total | 12 | 27,3 | 32 | 72,7 | 44 (100) | |
Grau de parentesco com o caso | ||||||
Consanguíneo | 6 | 13,6 | 14 | 31,8 | 20 (45,5) | 0,48 |
Não consanguíneo | 6 | 13,6 | 18 | 40,9 | 24 (54,5) | |
Total | 12 | 27,3 | 32 | 72,7 | 44 (100) | |
Passou por exame dermatoneurológico | ||||||
Sim | 7 | 15,9 | 20 | 45,5 | 27 (61,4) | 0,63 |
Não | 3 | 6,8 | 9 | 20,4 | 12 (27,3) | |
Não sabe informar | 2 | 4,5 | 3 | 6,8 | 5 (11,4) | |
Total | 12 | 27,3 | 32 | 40,9 | 44 (100) | |
Tomou BCG | ||||||
Sim | 10 | 22,7 | 26 | 59,1 | 36 (81,8) | 0,64 |
Não | 1 | 2,3 | 2 | 4,5 | 3 (6,8) | |
Sem informações | 1 | 2,3 | 4 | 9,1 | 5 (11,4) | |
Total | 12 | 27,3 | 32 | 40,9 | 44 (100) |
BCG, bacilo de Calmette‐Guérin.
Em 61,4% (27/44) dos contatos domiciliares foram realizados exame dermatoneurológico. Observou‐se que mesmo entre os contatos que tomaram a vacina BCG, ainda assim 22,7% (10/44) tiveram o resultado do teste ML Flow positivo (tabela 3).
Distribuição da frequência dos dados sociodemográficos quando relacionados ao resultado do teste sorológico ML Flow nos contatos domiciliares (n=44)
Dados sociodemográficos | ML Flow contatos | Total | Valor‐pa | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Positivo | Negativo | |||||
n | % | n | % | n (%) | ||
Gênero | ||||||
Masculino | 5 | 11,3 | 16 | 36,4 | 21 (47,7) | 0,44 |
Feminino | 7 | 15,9 | 16 | 36,4 | 23 (52,3) | |
Idade | ||||||
0 a 15 | 2 | 4,6 | 8 | 18,2 | 10 (22,8) | 0,55 |
16 a 35 | 4 | 9,1 | 7 | 15,9 | 11 (25,0) | |
36 a 55 | 3 | 6,8 | 11 | 25,0 | 14 (31,8) | |
Acima de 55 | 3 | 6,8 | 6 | 13,6 | 9 (20,4) | |
Escolaridade | ||||||
Analfabeto | 1 | 2,3 | – | – | 1 (2,3) | 0,09 |
Fundamental incompleto | 7 | 15,9 | 11 | 25,0 | 18 (40,9) | |
Fundamental completo | – | – | 5 | 11,4 | 5 (11,4) | |
Ensino médio | 3 | 6,8 | 11 | 25,0 | 14 (31,8) | |
Ensino superior | 1 | 2,3 | 3 | 6,8 | 4 (9,1) | |
Pós‐graduado | ‐ | ‐ | 2 | 4,5 | 2 (4,5) | |
Grau de parentesco | ||||||
Filho(a) | 2 | 4,5 | 10 | 22,7 | 12 (27,2) | 0,48 |
Esposo(a) | 4 | 9,1 | 11 | 25,0 | 15 (34,1) | |
Irmão(ã) | 3 | 6,8 | 1 | 2,3 | 4 (9,1) | |
Pai/mãe | 1 | 2,3 | 2 | 4,5 | 3 (6,8) | |
Cunhado(a) | – | – | 2 | 4,5 | 2 (4,5) | |
Enteado(a) | – | – | 4 | 9,1 | 4 (9,1) | |
Neto(a) | – | – | 1 | 2,3 | 1 (2,3) | |
Nora | 1 | 2,3 | 1 | 2,3 | 2 (4,6) | |
Padrasto | 1 | 2,3 | – | – | 1 (2,3) |
O resultado positivo para ML Flow dos contatos foi mais frequente em mulheres (15,9%; 7/44) com idade superior a 35 anos (13,6%; 6/44) e com ensino fundamental incompleto ou analfabeto (18,2%; 8/44).
A positividade no teste ML Flow, quando relacionado com o grau de parentesco do contato com o caso, foi mais presente em marido/mulher (4,9%; 4/44), seguido por irmãos (6,8%; 3/44) e filhos (4,5%; 2/44). Quando observado o número total de coletas de cada grau de parentesco com a positividade, o número de irmãos sobressai: quatro coletas, e destas, três foram positivas (tabela 4)
Distribuição da frequência dos dados clínicos relacionados ao resultado do teste sorológico ML Flow nos casos de hanseníase (n=26)
Dados clínicos dos casos | ML Flow casos | Total | Valor‐pa | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Positivo | Negativo | |||||
n | % | n | % | n (%) | ||
Forma clínica | ||||||
Indeterminada | – | – | 1 | 3,8 | 1 (3,8) | 0,01 |
Tuberculoide | – | – | 3 | 11,5 | 3 (11,5) | |
Dimorfa | 4 | 15,4 | 1 | 3,8 | 5 (19,2) | |
Virchoviana | 10 | 38,5 | 7 | 27,0 | 16 (65,5) | |
Baciloscopia | ||||||
Positiva | 12 | 46,1 | 4 | 15,4 | 16 (61,5) | 0,00 |
Negativa | 2 | 7,7 | 8 | 30,8 | 10 (38,5) | |
Biópsiab | ||||||
Sugestivo hanseníase | 5 | 41,7 | 5 | 41,7 | 10 (83,4) | 0,31 |
Negativo | – | – | 2 | 16,6 | 2 (16,6) | |
Grau de incapacidade | ||||||
Com GIF | 5 | 19,2 | 4 | 15,4 | 9 (34,6) | 0,61 |
Sem GIF | 9 | 34,6 | 8 | 30,8 | 17 (65,4) | |
Classificação operacional | ||||||
Paucibacilar | – | – | 5 | 19,2 | 5 (19,2) | 0,01 |
Multibacilar | 14 | 53,8 | 7 | 27,0 | 21 (80,8) |
GIF, grau de incapacidade física, segundo a Organização Mundial da Saúde.
Dentre casos diagnosticados com forma clínica dimorfa e virchoviana (MB), quando a baciloscopia foi associada ao teste MF Flow, os resultados apresentados foram compatíveis em 20 (76,9%) casos, dos quais 12 (60%) foram positivos e oito (40%) negativos para ambos os testes.
Quando comparado o resultado do teste ML Flow do caso índice com sua classificação operacional (PB ou MB), observamos que todos os pacientes classificados como PB (cinco; 19,2%) tiveram resultado negativo; entre os pacientes MB, 14 (53,8%) foram positivos e sete (27%) negativos.
A média de aparecimento dos sintomas para os casos que tiveram sorologia positiva (53,8%; 14/26) foi de 31,7 meses (DP=37,9). A mediana foi de 12 meses (6‐32). Para os casos que tiveram sorologia negativa (n=12), a média foi de 38,75 (DP=33,54), com mediana de 30 meses (5‐99) – tabela 5.
Resultados dos testes sorológicos ML Flow dos casos de hanseníase e respectivos contatos intradomiciliares
Resultado ML Flow contato intradomiciliar | ||
---|---|---|
Resultado ML Flow caso hanseníase | Positivo (n=12) | Negativo (n=32) |
Positivo | 7 (15,9%) | 17 (38,6%) |
Negativo | 5 (11,4%) | 15 (34,1%) |
Total | 12 (27,3%) | 32 (72,7%) |
Anticorpos anti‐PGL‐I, principalmente da classe IgM, são considerados específicos para M. leprae e são encontrados em pacientes com hanseníase, mas também podem ocorrer em baixos títulos em pessoas expostas. Os anticorpos não conferem proteção e indicam infecção por M. leprae.17 A positividade do teste ML Flow nos contatos é indicador indireto da disseminação da infecção por M. leprae na população em geral.18
Neste estudo, o achado de 27,3% de soropositividade nos contatos domiciliares é concordante com a literatura e demonstrou soropositividade para o ML Flow entre 15,6% nos PB19,20 a 28,6% nos MB.16,18 O monitoramento desses contatos evidenciou que os que apresentam ML Flow positivo têm mais risco de desenvolver formas MB do que os contatos soronegativos, mesmo sem apresentar evidências clínicas compatíveis com a doença, fato que reafirma a necessidade de acompanhamento mais efetivo desse grupo familiar.21
A maioria dos contatos soropositivos foi do sexo feminino; no entanto, até o momento, não existe consenso sobre esse dado na literatura. Alguns trabalhos apresentam maior soropositividade para o sexo masculino;18,22 já outros, para o feminino.23–25 Cabe lembrar que as mulheres procuram mais os serviços de saúde, o que deve favorecer maior acesso aos serviços de saúde e ao diagnóstico da hanseníase.23 Na análise, não foi encontrada associação dos dados sociodemográficos com os resultados do ML Flow nos contatos intradomiciliares.
Maior positividade ocorreu entre os contatos domiciliares de casos índice MB (dimorfo e virchoviano). Esse dado, que corrobora os estudos existentes,16,18,20,22 é um achado esperado, uma vez que os contatos domiciliares de pacientes com hanseníase MB na forma virchoviana apresentaram risco 3,8 vezes maior de desenvolvimento de hanseníase do que os contatos de pacientes com outras formas clínicas.3
A média de aparecimento dos sintomas encontrada neste estudo aventa a possibilidade de que os casos com sorologia positiva têm menor resistência ao bacilo de Hansen; portanto, ficam doentes mais precocemente do que aqueles com sorologia negativa.
Os achados deste estudo relativos à faixa etária e escolaridade também convergem com os encontrados na literatura, com predomínio para a faixa etária> 35 anos e baixa escolaridade (ensino fundamental incompleto ou analfabeto).18,21,26 A pouca escolaridade pode interferir na dificuldade de compreender as informações divulgadas acerca da hanseníase e favorecer a disseminação e o risco de contrair a doença. Ademais, estudos apresentam relação inversa entre o número de anos estudados e rentabilidade das famílias que, em sua maioria, apresentam baixa renda e desempregados ou trabalhadores autônomos, sugerindo ser doença associada a fatores socioeconômicos.25,26
A ocorrência de casos novos entre contatos domiciliares consanguíneos do caso índice, principalmente parentes de primeiro grau, apresentou probabilidade 2,05 vezes maior em relação a outros tipos de parentesco, evidenciando a importância da suscetibilidade genética na cadeia de transmissão da doença, já amplamente documentado na literatura.3,27,28
O tempo médio de 14 anos de convívio dos contatos com os casos de hanseníase e a maior parte desses contatos não ter convivido, nos últimos dez anos, com outros portadores da doença fora do domicilio, ratificam uma das propostas que para atingir as metas de eliminação como problema de saúde pública é necessário monitorar os contatos domiciliares, que são as pessoas que residam na mesma casa ou que tenham convívio contínuo e prolongado com o doente,29 visto que essa população está mais suscetível a adoecer.25
Apesar de o exame dermatoneurológico ser uma das diretrizes para investigação epidemiológica dos contatos domiciliares descritas no manual de prevenção e controle da doença, ainda assim, em apenas 61,4% dos contatos foram realizados o exame,14 indicando que o serviço de saúde precisa olhar com mais cuidado para essa problemática. Em contrapartida, dos contatos avaliados, a maioria apresentou pelo menos uma cicatriz vacinal de BCG, o que constitui achado satisfatório para esse grupo, uma vez que essa vacina foi incluída como medida de controle da hanseníase para uso em contatos das diversas formas clínicas da doença.14
Os casos índices classificados como MB (dimorfo e virchoviano) apresentaram positividade para o teste de ML Flow de 53,9%, enquanto nos PB não houve resultado positivo, divergindo da sensibilidade relatada na literatura, em que trabalhos apontam que a sensibilidade de alguns tipos de teste rápido (NDO‐LID, NDO, LID ou PGL‐1) em pacientes MB variam de 80% a 95%, enquanto em pacientes PB, quando detectável, é menor e variam de 15% a 64%.17,21
A classificação da hanseníase com base no número de lesões em PB (≤ cinco lesões dermatológicas) e MB (> cinco lesões dermatológicas) pode levar a um esquema terapêutico inapropriado, resultando no subtratamento de pacientes MB, quando classificados erroneamente como PB. Essa falha terapêutica é a preocupação dos profissionais de saúde que, não tendo acesso aos exames laboratoriais, tendem a tratar mais pacientes como MB. Em estudo realizado na Nigéria, foi observado que 95,7% receberam poliquimioterapia para MB, quando apenas 62,9% apresentavam ML Flow positivo. Desses, 55,9% teriam até cinco lesões de pele e, portanto, estariam classificados como PB, conforme recomendação da OMS.17
Todos os casos índices realizaram também exame de baciloscopia. Quando comparados os resultados do teste ML Flow e baciloscopia, a concordância foi de 75%. No entanto, 15,4% dos casos índices apresentaram resultado positivo apenas na baciloscopia e 7,7% apenas no teste ML Flow. Os resultados negativos tiveram concordância de 100% para ambos os testes. Estes achados estão em dissenso com os apresentados na literatura, onde o teste ML Flow apresenta maior sensibilidade do que os exames de baciloscopia,17,30 o que pode ser justificado pelas constantes capacitações de coleta para baciloscopia realizadas na região estudada.
A concordância clínico‐histopatológica com os resultados do ML Flow encontrada neste estudo está de acordo com os dados apresentados na literatura.31
O diagnóstico tardio promove aumento do risco de deficiências físicas causadas pela progressão silenciosa da ação do bacilo no organismo, em especial nos nervos periféricos.32 Apesar de a região estudada ser considerada de baixa endemicidade na hanseníase, os achados deste estudo apontam índices elevados de deficiências físicas no momento do diagnóstico, o que sugere diagnóstico tardio.
Nenhum teste laboratorial, isoladamente, é suficientemente sensível e específico para a correta classificação clínica em todas as formas de hanseníase, mas são ferramentas auxiliares importantes para um diagnóstico correto.
O teste ML Flow é rápido, individual, de fácil execução, com sensibilidade e especificidade semelhantes ao do ELISA,17 o que gerou melhor custo/benefício para a pesquisa. Além disso, não necessita de equipamentos laboratoriais para sua realização, convergindo com as estratégias do SUS. Sua utilização no SUS foi aprovada pela portaria SCTIE/MS n° 84, de 31 de dezembro de 2021, e sua distribuição será feita de maneira gradativa e descentralizada aos municípios.33
Entre os fatores limitantes para este estudo, podemos destacar a dificuldade de localização e convencimento dos contatos em comparecer aos serviços de saúde para avaliação e coleta de material. Outra dificuldade foi compilar os resultados dos exames laboratoriais, pois, apesar de haver uma rede de laboratórios de referência com fluxos definidos para o atendimento desses pacientes, alguns municípios encaminham os exames de baciloscopia e biópsias para diferentes laboratórios sem qualquer controle de qualidade.
ConclusãoO teste ML Flow é ferramenta eficaz tanto para selecionar os contatos domiciliares com predisposição para o desenvolvimento da doença e que necessitam de monitoramento mais próximo quanto para auxiliar na classificação clínica correta dos casos de hanseníase. Desse modo, os resultados sugerem que o ML Flow pode dar celeridade ao diagnóstico, auxiliando para evitar as deficiências físicas ainda presentes nas pessoas acometidas pela hanseníase nessa região.
Segundo os resultados deste estudo, os contatos dos doentes multibacilares, com baciloscopia positiva e consanguíneos, parecem estar mais expostos ao bacilo da hanseníase. Baixa renda, baixa escolaridade e condições de moradia insatisfatórias podem ser fatores de risco para o adoecimento por hanseníase para os contatos domiciliares; o seguimento desses grupos se faz necessário, visando interromper a cadeia de transmissão da doença.
Suporte financeiroFundação Paulista Contra Hanseníase – Projeto n° 183.
Contribuição dos autoresJanaína Olher Martins Montanha: Participou da concepção e delineamento do estudo; Coleta, análise e interpretação dos resultados; Redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito.
Susilene Maria Tonelli Nardi: Participaram da concepção e delineamento do estudo; Coleta, análise e interpretação dos resultados; Redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e Orientação do trabalho.
Fernanda Modesto Tolentino Binhardi: Contribuíram na concepção e delineamento do estudo; Redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito.
Heloisa da Silveira Paro Pedro: Contribuíram na concepção e delineamento do estudo; Redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito.
Milena Polotto de Santi: Contribuíram na concepção e delineamento do estudo; Redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito.
Vânia Del Arco Paschoal: Participaram da concepção e delineamento do estudo; Coleta, análise e interpretação dos resultados; Redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e Orientação do trabalho.
Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e são responsáveis por todos seus aspectos, incluindo a garantia de sua precisão e integridade.
Conflito de interessesNenhum.
À Fundação Paulista Contra Hanseníase (FPCH), pelo apoio financeiro, projeto inscrito n° 183.
Como citar este artigo: Montanha JOM, Nardi SMT, Binhardi FMT, Pedro HSP, Santi MP, Paschoal VDA. ML Flow serological test: complementary tool in leprosy. An Bras Dermatol. 2023;98:331–8.
Trabalho realizado no Centro de Laboratório Regional de São José do Rio Preto, Instituto Adolfo Lutz, São José do Rio Preto, SP, Brasil.