O pioderma gangrenoso decorrente do uso de cocaína/levamisol é uma condição rara associada ao consumo dessas substâncias. Na Colômbia, o uso de cocaína é frequente; a droga apresenta contaminação por levamisol, um anti‐helmíntico que aumenta os efeitos psicotrópicos e potencializa seus efeitos colaterais. Apresentamos três casos clínicos de pacientes com lesões ulceradas com diagnóstico de pioderma gangrenoso secundário ao uso de cocaína contaminada com levamisol – o que chamou a atenção da equipe de saúde para investigar o uso abusivo de substâncias como desencadeador de pioderma gangrenoso e também evidenciar que a interrupção do consumo foi a base do manejo.
Em 2016, 17 milhões de pessoas consumiram cocaína, de acordo com o relatório das Nações Unidas. Na Colômbia, estima‐se que a substância seja a segunda droga mais consumida, e esse problema é acrescido da contaminação com levamisol, que aumenta a ação psicotrópica e os efeitos colaterais. O levamisol foi suspenso para uso médico em 1999 devido a relatos de agranulocitose, por isso hoje só está disponível como anti‐helmíntico veterinário. Acredita‐se que a maior parte da cocaína esteja contaminada por esse composto. Tem sido descrito que a cocaína/levamisol produz vasculites e vasculopatias graves; entretanto, o desenvolvimento de pioderma gangrenoso (PG) é menos conhecido. A seguir, são apresentados três casos de PG associados ao uso de cocaína/levamisol, uma doença que deve alertar a equipe médica para investigar o uso abusivo de substâncias psicoativas como parte da abordagem integral desses pacientes.
Relatos dos casosPaciente 1Sexo masculino, 19 anos de idade, veio à consulta devido à ocorrência de lesão papular eritematosa no glúteo esquerdo há cinco dias, que posteriormente tornou‐se ulcerada, extremamente dolorida, com exsudação seropurulenta, além de nódulos subcutâneos nas palmas das mãos, plantas dos pés, cotovelos e tendão de Aquiles (fig. 1), febre, artralgia e mialgia generalizada. O paciente tinha histórico médico de espondiloartrite, úlceras orais e consumo de cocaína havia dois anos, com o último uso da droga ilícita no mês anterior. Ao exame físico, observamos úlcera profunda com bordas irregulares bem definidas, sem eritema ou sinais inflamatórios na borda, fundo limpo, aspecto granular, sem exsudato. Foi realizada biópsia de pele, com diagnóstico clínico‐patológico de PG e vasculite decorrentes do uso de cocaína com levamisol; as culturas foram negativas. O tratamento foi iniciado com 60mg de prednisolona e 500mg de sulfasalazina a cada 12 horas, além de manejo médico da dependência química por meio de toxicologia e psiquiatria, com melhora.
Paciente 2Sexo masculino, 30 anos de idade, veio à consulta devido ao aparecimento de lesão eritematosa nodular e dolorosa que posteriormente tornou‐se ulcerada, com início havia um ano, localizada inicialmente no membro inferior direito e a seguir apresentando comprometimento dos membros superiores, orelhas, pênis e tronco (fig. 2). Algumas das lesões persistiram e outras apresentaram cicatrização espontânea. Dez dias antes da internação hospitalar, as lesões aumentaram em número e tamanho. O paciente tinha histórico médico de tuberculose pulmonar tratada, uso de tetra‐hidrocanabinol e cocaína por cinco anos, com o último uso 10 dias antes. Ao exame físico, apresentava múltiplos nódulos eritematosos e úlceras com bordas violáceo‐acastanhadas definidas, levemente elevadas e erosadas, enquanto outras apresentavam bordas mais difusas, centro de aspecto cribiforme com pontos de sangramento e outras regiões com cicatrizes hipopigmentadas, localizadas predominantemente nos membros inferiores, com algumas nos membros superiores. Uma biópsia de pele foi realizada, com diagnóstico clínico‐patológico de vasculite e PG causado por consumo de cocaína e levamisol; as culturas foram negativas (fig. 3). O manejo da imunossupressão não foi estabelecido; o uso de cocaína foi suspenso, o que impediu o aparecimento de novas lesões, e o tratamento da dependência química por meio de toxicologia e psiquiatria continuou, com melhora.
Sexo masculino, 23 anos de idade, veio à consulta devido ao aparecimento de mácula violácea, que posteriormente apresentou ulceração, no tornozelo direito e joelho ipsilateral, com quatro meses de evolução e extremamente dolorosa, associada à astenia, adinamia e mialgia (fig. 4). Em seguida, houve aparecimento de lesões semelhantes no membro inferior contralateral, em ambas as mãos (dorso) e nas orelhas; algumas lesões cicatrizaram espontaneamente. Além disso, o paciente apresentou poliartralgia inflamatória com comprometimento dos ombros, cotovelos, punhos, joelhos e tornozelos. Havia histórico médico de alcoolismo, uso de tetra‐hidrocanabinol e cocaína – último uso havia duas semanas. O exame físico mostrou múltiplas úlceras superficiais, com bordas bem definidas, circulares, elevadas, discretamente violáceas nos membros inferiores, com tamanhos variáveis entre 0,5 e 3cm de diâmetro. Foram realizados estudos adicionais, com diagnóstico de vasculite, PG e síndrome nefrótica com urgência dialítica decorrentes do uso de cocaína e levamisol; as culturas foram negativas. Foram iniciados pulsos de metilprednisolona de 500mg por três dias, 500mg de ciclofosfamida ambulatorial por mês e 50mg de prednisolona oral. O manejo da dependência química por meio da toxicologia e psiquiatria continuou, com melhora.
Os resultados dos exames laboratoriais dos três pacientes são apresentados na fig. 5.
Resultados de exames laboratoriais dos três pacientes com pioderma gangrenoso relacionado ao consumo de cocaína. Eixo X, número do paciente; eixo Y, dados paraclínicos alterados.
AL, anticoagulante lúpico; ANAs, anticorpos antinucleares; ANCAS, anticorpos citoplasmáticos antineutrófilos; anti‐MPO, antimieloperoxidase; anti‐PR3, antiproteinase 3; LDH, desidrogenase láctica; PCR, proteína C‐reativa; TKP, proteína quinase total; VHS, velocidade de hemossedimentação.
O PG associado à cocaína/levamisol foi descrito recentemente. Foram identificados 23 casos publicados na literatura de língua inglesa,1–11 (tabela 1), nenhum deles na Colômbia. Diferentemente da forma clássica, o PG associado ao consumo de cocaína é acompanhado de vasculopatia e vasculite cutânea ou sistêmica. Os anticorpos, principalmente anticorpos contra o citoplasma de neutrófilos (ANCAS), e o anticoagulante lúpico positivo são exacerbados com o uso de cocaína, melhoram com a abstinência e têm rápida resposta aos imunossupressores. O uso de cocaína/levamisol desencadeia uma cascata de eventos imunológicos que levam à morte de neutrófilos, com a formação de redes extracelulares e a exposição a antígenos.
Casos de pioderma gangrenoso associado ao uso de cocaína ou cocaína / levamisol relatados na literatura
N° | Autores | Idade e sexo | Tempo de consumo | Tempo até o início de PG | Localização | Reexposição a | Vasculite | Sintomas sistêmicos | Autoanticorpos | Tratamento | Níveis de cocaína |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1 | Friedman et al. (2004)1 | 27 F | NR | NR | Face, pernas, braços e dorso. Destruição do septo,sinusite etmoidal e maxilar | Sim | Não | Não | ANAs+1:640, p‐ANCAS+contra PR3 | NR | Sim |
2 | E. Roche et al. (2008)2 | 30 M | 2 anos | 3 meses | Inicialmente dorso, depois tronco e membros | Sim | Não | Não | Não | Ciclosporina, metotrexato, tacrolimus tópico e infliximabe após interrupção do consumo de cocaína | Sim |
3 | E. Roche et al. (2008)2 | 37 M | 10 anos | 4 meses | Dorso, terço superior dos braços e músculo bucinador | Sim | Sim | Não | Não | Infliximabe, tacrolimus tópico, associado aabstinência de cocaína | Não |
4 | Camilla Bezerra da Cruz Maia et al. (2012)3 | 27 F | 10 anos | 5 anos | Hemiface esquerda e membros inferiores. Destruição do palato duro e septo nasal | Sim | Não | Não | Não | Azatioprina e prednisona demonstraram resultados satisfatórios, com cicatrização parcial da face | Não |
5 | D. Jimenez‐Gallo et al. (2013)4 | 54 F | 5 anos | 2 meses | Ambas as pernas. Nariz em sela,deformidade nasal associada afístula oronasal | Sim | Não | Púrpura retiforme e envolvimento pulmonar | p‐ANCAS+1:80 para elastase e ANAs 1:40 | Bolus de ciclofosfamida | Sim |
6 | Phillip J. Keith et al. (2014)5 | 51 F | NR | 2 meses | Face, abdômen, dorso, coxa e púbis | Sim | Não | Não | P‐ANCA+>1:640, ANAs+, AL+, ACL+ | Prednisona e abstinência de cocaína | Não |
7 | Haneol S. Jeong et al. (2015)6 | n=8; idade e sexo NR | NR | 1 a 4 semanas (mediana: 1 semana) | Membros inferiores (n=8), membros superiores (n=6), tronco (n=3), face (n=3) | Sim | n=5 | Púrpura retiforme (n=3). Artralgia (n=1) | ACL+(n=5), AL+(n=3), B2GP+(n=4) p‐ANCA+(n=7), anti‐PR3+(n=4) e anti‐MPO+(n=7), ANAs+(n=3) e FR+(n=1) | Prednisona foi administrada em 6 de 8 pacientes. Tratamento cuidadoso das feridas e prevenção do uso de cocaína em todos os pacientes com melhora | Sim |
8 | Carola Baliu‐Piqué et al. (2016)9 | 40 F | NR | 2 semanas | Mamas, quadris, extremidades superiores e inferiores | Sim | Não | Não | Não | Bolus de metilprednisolona, ciclosporina, infliximabe eácido micofenólico | Sim |
9 | Ricardo Ruiz‐Villaverde et al. (2016)7 | 38 M | NR | NR | Axilas, tórax, púbis e região lombar | Sim | Não | Não | Não | Prednisona | Sim |
10 | Rahul Sehgal et al. (2017)8 | 53 F | NR | 6 meses | Região dorsal superior, ulceração das vias nasais bilaterais e perfuração do septo nasal | Sim | Não | Pneumonite multifocal do lado direito e linfadenopatia reacional discreta. | Não | Triancinolona intra‐lesional, tratamento de feridas locais, prednisona, dapsona, tacrolimus tópico, ciclosporina e descontinuação da cocaína, resultando em melhora gradual | Sim |
11 | Ester Moreno‐Artero et al. (2018)10 | 37 M | NR | 4 anos | Músculo bucinador e glúteo direito | Sim | Não | Não | c‐ANCAS+contra PR3 e AL+ | NR | Sim |
12 | Ester Moreno‐Artero et al. (2018)10 | 34 F | NR | 20 dias | Ambas as mãos, região lombar e membros inferiores | Sim | Não | Não | p‐ANCAs+contra elastase | NR | Sim |
13 | Ester Moreno‐Artero et al. (2018)10 | 43 M | 3 anos | 6 meses | Face, tronco e membros inferiores | Sim | Não | Não | ANCAs+contra elastase | NR | Sim |
14 | Andrea Estébaneza et al. (2020)11 | 40 F | NR | 6 meses | Região dorsal, queixo e área retroauricular. Destruição do septo nasal e da parede lateral do seio maxilar | Sim | Não | Abscesso peri‐renal posterior esquerdo e para‐renal estéril | Não | Corticosteroides e cessação do uso de cocaína por meio de um programa antidrogas, as lesões cutâneas e o abscesso renal foram resolvidos | Não |
15 | Andrea Estébaneza et al. (2020)11 | 51 M | NR | NR | Lesão do tendão de Aquiles direito | Sim | Sim | Não | Não | Prednisona e o consumo de cocaína foi temporariamente interrompido | Sim |
16 | Andrea Estébaneza et al. (2020)11 | 54 M | NR | 2 semanas | Região dorsal | Sim | Não | Não | ANAs+(titulação 1/320) | Corticosteroide | Sim |
ACL, anticorpo anticardiolipina; AL, anticoagulante lúpico; ANA, anticorpo antinuclear; anti‐MPO, antimieloperoxidase; B2GP, beta‐2 glicoproteína; c‐ANCA, anticorpos citoplasmáticos antineutrófilos citoplásmicos; F, sexo feminino; FR, fator reumatoide; M, sexo masculino; NR, não registrado; p‐ANCA, anticorpos citoplasmáticos antineutrófilos perinucleares; PR3, anticorpo antiproteinase‐3.
Nesta série de casos, além do comprometimento cutâneo, um deles apresentou insuficiência renal que exigiu diálise. O Caso 2, embora sem comprometimento de outros órgãos, apresentou inflamação sistêmica, diminuição do complemento e presença de autoanticorpos. É possível que fatores de suscetibilidade individual, somados a alguns outros como tempo, e frequência de uso e grau de contaminação da cocaína, possam estar envolvidos no tipo de manifestação clínica e sua gravidade. O uso da cocaína constitui um problema pelas lesões cutâneas e sistêmicas e possíveis consequências, como insuficiência renal crônica e até morte.
Em conclusão, foram apresentados três casos de PG associado ao uso de cocaína/levamisol, todos com comprometimento cutâneo e um com insuficiência renal aguda. A suspensão do uso de cocaína é a pedra angular do tratamento; portanto, esses pacientes necessitam de tratamento multidisciplinar que inclui especialistas em reabilitação de dependência química. Esses casos coincidem com os descritos na literatura, por isso se presume que a cocaína utilizada esteja contaminada com levamisol, como a maior parte da droga comercializada atualmente. O dermatologista deve estar atento a esses tipos de reações associadas aos psicofármacos e, além disso, é importante informar a comunidade sobre os riscos adicionais relacionados ao uso da cocaína.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresManuel Antonio Martínez‐Gómez: Concepção e planejamento do estudo; preparação e redação do manuscrito; coleta, análise e interpretação de dados; participação intelectual na conduta propedêutica e/ou terapêutica dos casos estudados; revisão crítica da literatura.
Joan Andrés Ramirez Ospina: Concepção e planejamento do estudo; preparação e redação do manuscrito; coleta, análise e interpretação de dados; participação intelectual na conduta propedêutica e/ou terapêutica dos casos estudados; revisão crítica da literatura.
Juan David Ruiz‐Restrepo: Aprovação da versão final do manuscrito; Participação efetiva na orientação de pesquisa; participação intelectual na conduta propedêutica e/ou terapêutica dos casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Margarita María Velásquez Lopera: Aprovação da versão final do manuscrito; Participação efetiva na orientação de pesquisa; participação intelectual na conduta propedêutica e/ou terapêutica dos casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Martínez‐Gómez M, Ramírez‐Ospina JA, Ruiz‐Restrepo JD, Velásquez‐Lopera MM. Pyoderma gangrenosum associated to the use of cocaine/levamisole. Series of three cases and literature review. An Bras Dermatol. 2021;96:188–95.
Trabalho realizado no Hospital Universitário de la Fundación San Vicente, Medellín, Colômbia.