A paracoccidioidomicose é a principal micose sistêmica da América Latina1. Acomete majoritariamente residentes do meio rural em decorrência da manipulação do solo e infecção por via inalatória2.
Em relação à classificação clínica, existe a forma crônica do adulto, responsável por 80% dos casos, e a forma aguda/subaguda juvenil, representando 20% dos casos3.
Relatamos um caso de mulher adulta com forma grave e atípica da doença, residente em área urbana onde foram descritos diversos casos relacionados à mudança ambiental local, caracterizada por intensa e prolongada movimentação do solo durante construção de rodovia do arco metropolitano que atravessa centros urbanos no estado do Rio de Janeiro4.
Relato do casoPaciente do sexo feminino, 61 anos, do lar, natural e residente da zona urbana de Nova Iguaçu (RJ, Brasil), apresentando icterícia associada à dor abdominal havia cinco meses. Evoluiu com ascite, perda ponderal e aumento do número de lesões. Negava viagem recente, comorbidades, tabagismo e etilismo.
Ao exame físico, apresentava icterícia, abdome distendido, hepatoesplenomegalia com o lobo hepático direito presente a 3 cm do rebordo costal e baço palpável entre o rebordo costal e a cicatriz umbilical, e ausência de linfonofodomegalias palpáveis nas cadeias superficiais. Ao exame dermatológico, notavam‐se múltiplas pápulas eritematosas na face, tronco e membros. Na região cervical, as pápulas mostravam tonalidade violácea com leve descamação (figs. 1 e 2).
Nos exames laboratoriais, destacavam‐se anemia, icterícia com padrão colestático e imunodifusão para paracoccidioidomicose negativa. Os resultados dos exames de interesse foram os seguintes: hemoglobina 7,8 g/dL; hematócrito 23%; contagem de leucócitos 11900μL (neutrófilos 83%; linfócitos 14%; monócitos 3%; e eosinófilos 0%); plaquetas 700×103μL; aspartato aminotransferase 90 U/L; alanina aminotransferase 52 U/L; fosfatase alcalina 2563 U/L; gamaglutamiltransferase 233 U/L; bilirrubina total 12,76mg/dL; bilirrubina direta 9,22mg/dL; bilirrubina indireta 3,54mg/dL; albumina 2,5g/dL; globulina 3,5g/dL; índice de protrombina 49%; tempo de tromboplastina parcial ativada 44,2 segundos. Os exames sorológicos para hepatite B e C, sífilis e HIV foram negativos.
A tomografia computadorizada de abdome e tórax evidenciou ectasia das vias biliares intra‐hepáticas, pâncreas de volume e densidade heterogêneos, derrame pleural bilateral e hepatoesplenomegalia, além de diversos linfonodos intra‐abdominais aumentados (fig. 3).
As principais hipóteses diagnósticas foram neoplasia hepatobiliar, cirrose biliar primária associada a líquen plano e paracoccidioidomicose.
Foram realizadas biópsias de pele, fígado e linfonodo intra‐abdominal. O exame histopatológico da pele revelou processo inflamatório crônico granulomatoso, com grande quantidade de neutrófilos e células gigantes multinucleadas com estruturas arredondadas no citoplasma. Na coloração de Grocott, foram evidenciadas estruturas esféricas coradas em castanho com gemulação múltipla em “roda de leme” e “orelha de Mickey mouse” (fig. 4).
(A) Processo inflamatório crônico granulomatoso, com grande quantidade de neutrófilos e células gigantes multinucleadas com estruturas arredondadas no citoplasma (Hematoxilina & eosina, 100×). (B) Estruturas esféricas coradas em castanho com gemulação múltipla em “roda de leme” e “orelha de Mickey mouse” (Grocott, 400×).
O exame histopatológico da biópsia hepática e linfonodal revelou processo inflamatório crônico granulomatoso com necrose e presença de estruturas fúngicas.
Os resultados dos exames histopatológicos firmara o diagnóstico de paracoccidioidomicose aguda/subaguda e foi iniciado tratamento com anfotericina B desoxicolato intravenosa 1mg/kg/dia. Entretanto, a paciente evoluiu com pancreatite e insuficiência renal aguda, apresentando os seguintes exames laboratoriais: amilase 470 U/L; lipase 864 U/L; ureia 118,8mg/dL; creatinina 1,9mg/dL. Com isso, o esquema terapêutico foi modificado para anfotericina B lipossomal 5mg/kg/dia associado a meropenem 1g IV, 8/8h e medidas de suporte nutricional, administração de fluidos intravenosos e uso de aminas. Foram realizadas hemoculturas e, apesar de não evidenciarem microrganismos, a paciente evoluiu com quadro clínico compatível com choque séptico refratário, em decorrência de necrose pancreática, e foi a óbito, não sendo realizada necrópsia.
DiscussãoDentre as micoses, a paracoccidioidomicose é a principal causa de óbito em imunocompetentes. No Brasil, durante o período de 1998 a 2006, a doença foi responsável por 50% das internações em casos de micoses, com mortalidade hospitalar de 5%5.
Apesar de a doença ser rara em áreas urbanas, estudo descreve o aumento de sua incidência após desmatamento e remoção maciça de terra para construção de rodovia do arco metropolitano que atravessa centros urbanos no estado do Rio de Janeiro. Antes da execução da rodovia, havia 1,29 casos para cada milhão de habitantes na região. Após a mesma, ocorreu aumento para 8,25 casos por milhão de habitantes4. Esta paciente era natural e residente de Nova Iguaçu, onde a construção foi realizada.
Em relação às hipóteses diagnósticas, destacamos que, inicialmente, foi investigada a possibilidade de hepatocarcinoma; as biópsias hepática, da pele e do linfonodo evidenciaram a paracoccidiodomicose, correlacionando as lesões cutâneas com o quadro clínico. Entretanto, antes do resultado dos exames histopatológicos, incluímos entre as hipóteses a cirrose biliar primária associada ao líquen plano, em virtude do aspecto liquenoide das lesões e dos relatos da associação da doença hepática com essa dermatose6,7.
No caso em questão, a icterícia chamava atenção em virtude do grave acometimento hepatobiliar, que faz parte dos sistemas mais acometidos pela doença8. As principais causas de icterícia relacionadas à paracoccidioidomicose são: obstrução biliar em decorrência de linfonodomegalia, pancreatite, lesão granulomatosa intraluminal e hepatite. Ressaltamos que as duas primeiras causas citadas foram encontradas na paciente. De modo geral, a icterícia obstrutiva ocorre quando há compressão extrínseca do ducto biliar comum causada pelo aumento dos linfonodos próximos ao hilo hepático. Já a pancreatite decorre do bloqueio da drenagem do ducto pancreático por compressão ganglionar regional9.
Concluindo, em áreas endêmicas, é importante lembrar‐se da paracoccidioidomicose entre as hipóteses diagnósticas de icterícia e de outros sinais e sintomas de colangite8. Além disso, devemos estar atentos ao surgimento de casos em áreas urbanas onde estejam ocorrendo mudanças ambientais, especialmente com desmatamento, que pode afetar a relação saúde‐doença.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresFernanda Altoé Stringuini: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura.
Priscila Oliveira Naback: Obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Luciana Ferreira Araújo: Aprovação da versão final do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Ricardo Barbosa Lima: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Carlos José Martins: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Stringuini FA, Naback PO, Araújo LF, Lima RB, Martins CJ. Severe paracoccidioidomycosis, with a fatal outcome and incidence related to an environmental event. An Bras Dermatol. 2023;98:133–7.
Trabalho realizado no Serviço de Dermatologia, Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, Escola de Medicina e Cirurgia, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.