O lockdown estabelecido pela COVID‐19 possivelmente significou atraso no diagnóstico e tratamento do melanoma e, portanto, piora do prognóstico. Essa situação especial de adiamento do diagnóstico é oportunidade excepcional para investigar a biologia do melanoma.
ObjetivosAvaliar o impacto imediato e em médio prazo do atraso no diagnóstico do melanoma relacionado ao lockdown da COVID‐19.
MétodosEstudo observacional retrospectivo de melanomas diagnosticados entre 14 de março de 2019 e 13 de março de 2021. Foram comparadas as características dos melanomas diagnosticados durante um primeiro período de seis meses após a instauração do lockdown e um segundo período após a recuperação da atividade normal com os mesmos períodos do ano anterior, respectivamente.
ResultadosForam diagnosticados 119 melanomas. Não houve diferenças em relação à idade, sexo, incidência, localização, presença de ulceração ou mitoses e taxa de melanoma in situ/invasivo (p> 0,05). Após a recuperação da atividade normal, a espessura de Breslow aumentou em comparação com o ano anterior (2,4 vs. 1,9mm, p <0,05), resultando em aumento significante seguindo os critérios do AJCC 8ª ed. (p <0,05).
Limitações do estudoA principal limitação é que este é um estudo de centro único.
ConclusõesO lockdown causado pela COVID‐19 implicou em atraso no diagnóstico, levando ao aumento em médio prazo na espessura de Breslow e no aumento do estágio de melanomas invasivos. Entretanto, o adiamento da detecção não resultou em maior progressão dos melanomas in situ para invasivos na presente instituição.
Devido à pandemia da doença do coronavírus 2019 (COVID‐19), muitos países entraram em lockdown ou confinamento, que se iniciou na Espanha em 14 de março de 2020.1 A maioria das cirurgias e consultas foram canceladas porque a população ficou preocupada em se infectar. Portanto, os pacientes eram consultados principalmente em decorrência de sintomas graves. Isso poderia levar a redução no diagnóstico de diferentes doenças, como câncer de pele,2,3 ataques cardíacos4 ou derrames,5 e comprometimento dos programas de rastreamento de câncer.6,7 No caso do melanoma, estudo recente estimou aumento de 45% dos casos de melanoma invasivo após atraso de três meses.8
Embora alguns autores tenham observado redução no número de melanomas diagnosticados durante o lockdown,2,9 outros estudos mostraram resultados opostos.10,11 Entretanto, como a maioria dos artigos limitou o período estudado ao lockdown, só é possível estimar o impacto do atraso no diagnóstico do melanoma. Os melanomas diagnosticados após o lockdown foram comparados não apenas em curto prazo, mas também após o restabelecimento da atividade clínica normal, para avaliar se o atraso no diagnóstico devido ao lockdown causado pela COVID‐19 realmente significou piora do prognóstico dos melanomas.
MétodosFoi realizado estudo com desenho observacional retrospectivo, unicêntrico, de melanomas diagnosticados histopatologicamente entre 14 de março de 2019 e 13 de março de 2021. Esse estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética Institucional. Os dados foram recuperados dos prontuários do Departamento de Patologia do hospital da instituição. Foram coletados dados demográficos, encaminhamento por teledermatologia, localização do melanoma, espessura de Breslow (mm), presença de mitoses, ulceração e estadiamento do AJCC (American Joint Committee on Cancer 8thedition). A incidência foi calculada por 100.000 habitantes. Melanomas metastáticos e melanomas diagnosticado clinicamente sem confirmação histopatológica foram excluídos. O primeiro período de seis meses após o início do lockdown, entre 14 de março de 2020 e 13 de setembro de 2020 (1° P20) e um segundo período de seis meses entre 14 de setembro de 2020 e 13 de março de 2021 (2° P20) foram comparados com os mesmos períodos do ano anterior (1° P19 e 2° P19, respectivamente).
A análise estatística foi realizada utilizando R (R Core Team, Viena, Áustria); teste t e teste U de Mann‐Whitney foram usados para variáveis quantitativas. O teste exato de Fisher foi usado para a análise das variáveis qualitativas.
ResultadosUm total de 119 melanomas foi incluído no estudo. As características dos melanomas estão resumidas na tabela 1. Um total de 29 e 24 melanomas foram diagnosticados no 1° P19 e 1° P20 respectivamente, e não foram encontradas diferenças em relação à incidência (16,1 vs. 13,3 por 100.000 habitantes, p> 0,05). Um total de 36 e 30 melanomas foram diagnosticados no 2° P19 e 2° P20 respectivamente, também sem diferenças na incidência (20 vs. 16,7 por 100.000 habitantes, p> 0,05).
Características dos pacientes e dos melanomas diagnosticados entre 14 de março de 2019 e 13 de março de 2021
1o Período | 2o Período | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
1o P19 | 1o P20 | p‐valor | 2o P19 | 2o P20 | p‐valor | |
n=29 | n=24 | n=36 | n=30 | |||
Incidência por 100.000 habitantes | 0,583 | 0,539 | ||||
16,1 | 13,3 | 20 | 16,7 | |||
Idade (média) | 0,162 | 0,974 | ||||
59±18 | 66±17 | 70±17 | 69±16 | |||
Sexo | 1 | 0,612 | ||||
Masculino | 14 (48%) | 11 (46%) | 11 (31%) | 11 (37%) | ||
Feminino | 15 (52%) | 13 (54%) | 25 (69%) | 19 (63%) | ||
Localização | 0,777 | 0,396 | ||||
Cabeça e pescoço | 10 (34%) | 7 (29%) | 12 (33%) | 9 (30%) | ||
Tronco anterior | 2 (7%) | 4 (17%) | 2 (6%) | 1 (3%) | ||
Tronco posterior | 9 (31%) | 7 (29%) | 11 (31%) | 8 (27%) | ||
Extremidade superior | 6 (21%) | 3 (13%) | 4 (11%) | 2 (7%) | ||
Extremidade inferior | 2 (7%) | 2 (8%) | 7 (19%) | 6 (20%) | ||
Acral | 0 | 1 (4%) | 0 | 4 (13%) | ||
Encaminhamento | 0,250 | 1 | ||||
Teledermatologia | 8 (28%) | 11 (46%) | 10 (28%) | 8 (27%) | ||
In situ/invasivo | 0,166 | 0,458 | ||||
In situ | 16 (55%) | 8 (33%) | 15 (42%) | 16 (53%) | ||
Invasivo | 13 (45%) | 16 (67%) | 21 (58%) | 14 (47%) | ||
Espessura de Breslow (mm, média) | 0,263 | 0,040a | ||||
1,8±1,7 | 1,2±1,4 | 1,9±2,7 | 2,4±2,3 | |||
Ulceração | 1 | 0,453 | ||||
3 (10%) | 3 (12%) | 3 (8%) | 5 (17%) | |||
Mitoses | 0,767 | 0,310 | ||||
8 (28%) | 8 (33%) | 10 (28%) | 12 (40%) | |||
Grupo de estadiamento pT (AJCC 8aed.) | 0,770 | 0,044a | ||||
pT1a | 5 (17%) | 9 (38%) | 14 (39%) | 6 (20%) | ||
pT1b | 1 (3%) | 2 (8%) | 1 (3%) | 1 (3%) | ||
pT2a | 4 (14%) | 1 (4%) | 0 | 0 | ||
pT2b | 1 (3%) | 1 (4%) | 0 | 0 | ||
pT3a | 1 (3%) | 1 (4%) | 0 | 3 (10%) | ||
pT3b | 0 | 1 (4%) | 0 | 2 (7%) | ||
pT4a | 0 | 0 | 3 (8%) | 0 | ||
pT4b | 1 (3%) | 1 (4%) | 3 (8%) | 2 (7%) |
Legenda: 1° P19, 14 de março de 2019 ‐ 13 de setembro de 2019. 1° P20, 14 de março de 2020 ‐ 13 de setembro de 2020. 2° P19, 14 de setembro de 2019 ‐ 13 de março de 2020. 2° P20, 14 de setembro de 2020 ‐ 13 de março de 2021.
Os pacientes em ambos os períodos foram semelhantes em relação a idade e sexo (p> 0,05). Não houve diferenças na localização dos tumores, taxa de encaminhamento à teledermatologia e presença de ulceração ou mitoses (p> 0,05).
Os melanomas invasivos representaram 45% e 67% dos melanomas diagnosticados no 1° P19 e 1° P20, respectivamente. Após a recuperação da atividade normal, a proporção de melanomas invasivos foi de 58% para o 2° P19 e 47% para o 2° P20. No entanto, não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas nas taxas de melanoma in situ/invasivo em nenhum dos períodos.
A espessura de Breslow dos melanomas diagnosticados aumentou no 2°P20 em comparação com o ano anterior (2,4 vs. 1,9mm; p <0,05) o que implicou em diferenças no estágio AJCC (p <0,05). Entretanto, não foram encontradas diferenças no primeiro período (p> 0,05) – figura 1.
A espessura de Breslow dos melanomas invasivos não diferiu significantemente durante o primeiro período (p> 0,05) (A). Entretanto, aumento estatisticamente significante da espessura de Breslow foi observado no 2° P20, após a recuperação da atividade normal, em comparação com o ano anterior (p <0,05) (B). Esses resultados sugerem que alguns melanomas invasivos sofreram atraso no diagnóstico, o que implicou em piora do prognóstico.
Diferentes abordagens, como a promoção da teledermatologia,12 foram consideradas para minimizar os efeitos da COVID‐19 no diagnóstico de melanomas. Valenti et al.13 relataram adiamento de 2,3 meses das revisões de câncer de pele avançado, que é semelhante ao atraso médio estimado de três meses, pois foram necessários seis meses desde o início do lockdown até que a atividade clínica normal fosse novamente alcançada. De acordo com alguns estudos, esse atraso seria suficiente para determinar o aumento do estágio de melanomas invasivos,8 mas esse aumento na espessura de Breslow só seria visto quando o atraso ocorresse e não durante o lockdown. Por isso, foi incluído um segundo período após a atividade clínica ter recuperado os níveis de pré‐lockdown para analisar se o atraso no diagnóstico realmente teve repercussão naqueles melanomas que potencialmente “ficaram em casa”.
Alguns autores encontraram uma redução significativa no diagnóstico de melanoma durante o lockdown.2,9 Entretanto, semelhante a outros relatos,10,11 embora uma diminuição no número de melanomas tenha sido encontrada em ambos os períodos (cinco no primeiro período e seis no segundo período), não foi identificada uma redução significativa na incidência de melanomas por 100.000 habitantes em nenhum período.
Alguns relatos mostraram um aumento na espessura de Breslow ou um aumento do estágio dos melanomas diagnosticados durante o lockdown em comparação com o ano anterior,14,15 mas como alguns também mostraram uma diminuição importante no número de diagnósticos, principalmente de melanomas in situ,15 acredita‐se que seria o resultado do subdiagnóstico de melanomas finos, e não de um crescimento “imediato” de melanomas devido ao lockdown. Como esperado, não foram encontradas diferenças na espessura de Breslow no primeiro período, mas foi encontrado aumento significante na espessura de Breslow após a recuperação da atividade normal em comparação com o ano anterior (1,9mm no 2° P19 vs. 2,4mm no 2° P20; p <0,05; fig. 1), o que implicou em aumento do estágio de acordo com os critérios do AJCC 8ª ed. (p <0,05). Isso indica que, embora não tenha sido encontrada redução na incidência, alguns melanomas sofreram atraso no diagnóstico.
Entretanto, essa piora de prognóstico encontrada nos melanomas invasivos devido ao atraso parece não afetar da mesma forma os melanomas in situ. Coincidindo com outros relatos,10 os resultados do presente estudo não mostram diferenças nas taxas de melanoma in situ e invasivo antes e após o início do lockdown e após a recuperação da atividade clínica normal (p> 0,05). Portanto, pode‐se supor que um atraso médio de três meses no diagnóstico decorrente da COVID‐19 não significou progressão de melanomas in situ no hospital onde o presente estudo foi realizado.
Mais estudos após a retomada da atividade clínica normal são necessários para avaliar se o atraso do diagnóstico realmente implicou em um aumento da progressão para melanomas invasivos. Embora os autores tenham esperança de que essa situação de atraso no diagnóstico do melanoma não se repetirá, eles acreditam que é uma oportunidade excepcional para a investigação da biologia do melanoma in situ e invasivo. Uma investigação mais aprofundada nesta área poderia fornecer informações valiosas para os protocolos de detecção de melanoma e para melhor compreender seu comportamento natural.
ConclusõesNão foi encontrada redução na incidência de melanomas em nenhum dos períodos considerados. No entanto, o aumento da espessura de Breslow e o consequente aumento do estágio observado, uma vez restabelecida a atividade clínica normal, sugere que o lockdown causado pela COVID‐19 resultou em atraso no diagnóstico do melanoma e piora do prognóstico dos melanomas invasivos. As taxas semelhantes de melanoma in situ/invasivo sugerem que um atraso médio de três meses no diagnóstico não implica necessariamente em um aumento na progressão dos melanomas in situ.
Os autores acreditam que é importante reavaliar a real repercussão do lockdown no melanoma analisando os melanomas diagnosticados uma vez restabelecida a atividade clínica pré‐pandemia. Os resultados apresentados podem não ser completamente generalizáveis para outras regiões com diferentes incidências de COVID‐19. Portanto, os autores encorajam outros pesquisadores a analisar os diagnósticos de melanoma em médio prazo.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresPedro Gil‐Pallares: Concepção e planejamento do estudo; obtenção de dados, ou análise e interpretação de dados; análise estatística; redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Olalla Figueroa‐Silva: Concepção e planejamento do estudo; obtenção de dados, ou análise e interpretação de dados; análise estatística; redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Maria Eugenia Gil‐Pallares: Concepção e planejamento do estudo; obtenção de dados, ou análise e interpretação de dados; análise estatística; redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
José Ángel Vázquez‐Bueno: Concepção e planejamento do estudo; obtençãp de dados, ou análise e interpretação de dados; análise estatística; redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Francisca Piñeyro‐Molina: Concepção e planejamento do estudo; obtenção de dados, ou análise e interpretação de dados; análise estatística; redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Benigno Monteagudo: Concepção e planejamento do estudo; obtenção de dados, ou análise e interpretação de dados; análise estatística; redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Cristina De las Heras‐Sotos: Concepção e planejamento do estudo; obtenção de dados, ou análise e interpretação de dados; análise estatística; redação do manuscrito ou revisão crítica de conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Gil‐Pallares P, Figueroa‐Silva O, Gil‐Pallares ME, Vázquez‐Bueno JÁ, Piñeyro‐Molina F, Monteagudo B, et al. Did COVID‐19 lockdown diagnosis delay actually worsen melanoma prognosis? An Bras Dermatol. 2023;98:176–80.
Trabalho realizado no Departamento de Dermatologia, Complejo Hospitalario Universitario de Ferrol in Ferrol, Coruna, Espanha.