A doença COVID‐19 causada pelo coronavírus SARS‐CoV‐2 causa ampla gama de manifestações clínicas que variam de leves a graves, sendo que as principais envolvem o trato respiratório, como a pneumonia. Nos pacientes com maior gravidade destaca‐se a alta frequência de coinfecção bacteriana e fúngica, situação relacionada tanto às comorbidades pré‐existentes do paciente quanto em virtude da própria internação hospitalar. Casos de mucormicose associada à COVID‐19 tiveram destaque na mídia leiga e científica, sendo o aumento de casos dessa micose atribuído direta e indiretamente à infecção viral. Apresentamos um caso de mucormicose rino‐órbito‐cerebral em paciente diabético com internação por COVID‐19 cujo diagnóstico foi confirmado pela identificação do agente Rhizopus microsporus var. microsporus em cultura para fungos e exame de PCR.
Homem de 67 anos com diabetes mellitus (DM) referindo dor ocular e diminuição da acuidade visual à direita há dez dias, iniciada durante internação hospitalar recente em outro nosocômio por COVID‐19, cujo relatório médico informa tratamento com corticoterapia, antibioticoterapia não especificada e fisioterapia respiratória. Recebeu alta daquele hospital e buscou imediatamente nosso serviço apresentando edema e eritema intenso na conjuntiva direita, com eritema discreto na pálpebra superior (fig. 1) e plegia ocular no exame dinâmico. Exames complementares evidenciaram descompensação do DM e à tomografia computadorizada, sinusopatia inflamatória. Com hipótese diagnóstica de mucormicose rino‐órbito‐cerebral, foi realizada abordagem cirúrgica com envio de material para exame histológico, que evidenciou hifas hialinas cenocíticas com angulação de 90° (fig. 2), e para cultura de fungos, com crescimento de Rhizopus sp. (fig. 3). A colônia foi enviada para identificação do isolado por PCR, e as regiões do espaçador transcrito interno (ITS) foram amplificadas usando as regiões ITS4 e ITS5 do gene 5,8S do DNA ribossômico (rDNA) do fungo; foi identificado o agente Rhizopus microsporus var. microsporus. Instituído tratamento com anfotericina B lipossomal e compensação da doença de base. O paciente evoluiu com piora do quadro clínico; foi necessária uma segunda abordagem cirúrgica com enucleação ocular e amplo desbridamento cirúrgico. O paciente evoluiu com melhora progressiva, e após 66 dias de internação recebeu alta hospitalar com seguimento ambulatorial para readequação estética.
Rhizopus microsporus. (A), Colônia composta de micélio algodonoso esbranquiçada e micélio aéreo granuloso enegrecido. (B), Microcultivo evidenciando hifa cenocítica com rizoides, esporangióforo e esporângios vazios. Notam‐se presença de esporangiósporos ao redor da estrutura (Azul de algodão, 400x).
A mucormicose é doença fúngica rara, oportunista, globalmente distribuída, com patofisiologia centrada na angioinvasão que leva a necrose tecidual. Entre os agentes etiológicos mais descritos estão os fungos cenocíticos dos gêneros Rhizopus e Mucor.1,2 Por se tratar de um fungo universal e saprófita, a infecção geralmente ocorre em pacientes com alguma doença que favoreça a imunossupressão – DM é a mais relacionada.2,3 A forma clínica mais frequente é a rino‐órbito‐cerebral,1,4 de prognóstico reservado, que apresenta melhores índices quando associado anfotericina B a exérese cirúrgica ampla do tecido infectado.1,5
Em estudo realizado antes da pandemia da COVID‐19, 71% dos casos mundiais de mucormicose foram reportados na Índia.6 Em estudo recente realizado no mesmo país, 1,8% dos pacientes com COVID‐19 evoluíram com mucormicose; 76,6% desses coinfectados eram diabéticos.7 Esses índices não são de se surpreender, uma vez que a Índia ocupa o segundo lugar no mundo em números absolutos de pessoas com DM, principal fator de risco para mucormicose3
O SARS‐CoV‐2 também promove alterações no hospedeiro, principalmente nas formas graves de infecção, que favorecem o desenvolvimento dos agentes da mucormicose. Entre elas, destacam‐se o dano direto às células pancreáticas, causando DM agudo e cetoacidose, o uso de corticosteroides, que alteram a homeostase glicêmica e favorecem indiretamente a progressão da micose, a alteração do metabolismo do ferro levando a um ambiente interno com altas taxas de ferritina, fator primordial para o desenvolvimento do fungo, e por fim, a endotelite causada diretamente pelo vírus, facilitando a angioinvasão fúngica.8
O caso aqui descrito mantém a linha clássica da apresentação da mucormicose, forma rino‐órbito‐cerebral em paciente com antecedente de DM, que compartilha outro fator de gravidade, a COVID‐19. O tratamento rápido e correto com antifúngico e abordagens cirúrgicas resultou em desfecho desfigurante, porém com preservação da vida do paciente nessa doença grave e fatal.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresSandy Daniele Munhoz: Concepção e o desenho do estudo; levantamento dos dados; análise e interpretação dos dados; redação do artigo; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica do conteúdo intelectual importante; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura.
Rute Facchini Lellis: Análise e interpretação dos dados.
Ana Paula Carvalho Reis: Análise e interpretação dos dados.
Gilda Maria Barbaro Del Negro: Obtenção, análise e interpretação dos dados.
Maria Glória Teixeira Sousa: Análise e interpretação dos dados.
John Verrinder Veasey: Concepção e o desenho do estudo; levantamento dos dados; análise e interpretação dos dados; redação do artigo; revisão crítica do conteúdo intelectual importante; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Munhoz SD, Lellis RF, Reis AP, Negro GM, Souza MG, Veasey JV. Rhino‐orbito‐cerebral mucormycosis caused by Rhizopus microsporus var. microsporus in a diabetic patient with COVID‐19. An Bras Dermatol. 2022;97:501–4.
Trabalho realizado na Clínica de Dermatologia do Hospital da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.