Paciente do sexo feminino, 64 anos, queixava‐se de escurecimento e deformidade da unha do terceiro quirodáctilo esquerdo havia dois anos. Ao exame, foram observadas onicodistrofia, discreto espessamento subungueal e melanoníquia longitudinal (ML) de pigmentação irregular de 3mm (fig. 1A). A dermatoscopia da lâmina ungueal evidenciou linhas longitudinais irregulares com multiplicidade de cores (marrom claro e escuro, preto e cinza) e hiperceratose localizada centralmente na borda livre da lâmina ungueal (fig. 1A). A dermatoscopia intraoperatória do leito e da matriz ungueal mostrou pigmentação variável do preto ao marrom, discretamente irregular (fig. 1B), ausência do sinal de Hutchinson e de sinais dermatoscópicos de verrugas virais. Foi realizada biópsia excisional do leito ungueal com margem de 2mm e optou‐se por cicatrização por segunda intenção. O exame histopatológico demonstrou proliferação intraepidérmica de queratinócitos atípicos com perda de polaridade (fig. 2A) e lâmina ungueal com hiperceratose focal. A imuno‐histoquímica evidenciou AE1/AE3 (pan‐citoqueratina) positiva (fig. 2B), e HMB45 e proteína S100 negativas, revelando a natureza epitelial e não melanocítica das células displásicas, compatível com doença de Bowen (DB).
Melanoníquia longitudinal da placa ungueal: (A) Onicodistrofia associada a pigmentação irregular e heterogênea em faixa de 3mm de largura no terceiro quirodáctilo esquerdo. Dermatoscopia da lâmina com linhas longitudinais irregulares marrom‐claras e escuras, pretas e cinzas (detalhe). (B) Dermatoscopia intraoperatória mostrando variação na pigmentação (marrom, cinza e preto) nas linhas discretamente irregulares
DB ungueal, ou carcinoma espinocelular (CEC) in situ, tem registro variável da sua frequência, possivelmente por falha no reconhecimento ou subnotificação. Em contrapartida, o CEC é a neoplasia mais comum do aparelho ungueal, que frequentemente tem seu diagnóstico tardio. Tipicamente, a DB ungueal se apresenta como hiperceratose subungueal ou lesão verrucosa da placa ou do leito ungueal; com eritema periungueal e paroníquia associados a crostas, ulcerações ou fissuras, onicocriptose e/ou distrofia ungueal, e raramente com ML.1 Sua ocorrência é prevalente em homens de meia‐idade, entre 50 e 69 anos. Em geral, é assintomática e cresce lentamente por anos ou décadas antes de desenvolver CEC invasivo. Exposição à radiação ultravioleta e ao arsênio, imunossupressão e infecção por papilomavírus humano (HPV) são considerados fatores de risco.2,3 Associações, em particular com o HPV‐56,4 ceratose seborreica e lentigo solar, são causas aventadas para a DB pigmentada.5 Dentre 1.712 casos analisados de DB, apenas 90 casos (5,25%) consistiam em DB pigmentada. Desses, 29% ocorreram em sítios não expostos ao sol, como regiões genitais e intertriginosas, indicando que outros fatores, além da radiação ultravioleta, possam influir na patogênese da pigmentação da DB. Nesta série, a maioria ocorreu em pacientes dos fototipos I–III e áreas expostas ao sol, e apenas 19% naqueles com fototipos IV–VI, que apresentaram maior probabilidade de ter DB pigmentada em áreas não expostas.5
Depósito de pigmentos exógenos (sujeira, tabaco), sangue e melanina são agentes frequentes da pigmentação da placa e do leito ungueal; a ativação melanocítica e nevos melanocíticos benignos são as causas mais comuns da ML em adultos e crianças, respectivamente. Entretanto, cerca de 2/3 e dos melanomas ungueais se apresentam clinicamente como ML.2
Alguns critérios clínicos devem elevar o índice de suspeição de melanoma na ML adquirida em adultos: presença de pigmentação heterogênea em faixas ou linhas de cores variáveis, fissuras da lâmina ungueal ou fendas, especialmente da região distal (forma triangular), surgimento súbito de pigmentação da lâmina ungueal e borramento da dobra ungueal lateral.2,3 Na dermatoscopia da lâmina ungueal, os principais critérios de suspeição são: i) distrofia ungueal; ii) presença de cor cinzenta ou preta associada a pigmentação marrom irregular, iii) pigmentação granular; e/ou iv) envolvimento de mais de 2/3da lâmina ungueal.6
A DB pigmentada digital simula o melanoma e pode mostrar padrão caótico na dermatoscopia (padrão paralelo atípico de sulcos e cristas) e padrão caótico com linhas radiais segmentares sugestivo de melanoma, associados a outras características dermatoscópicas sugestivas de DB, como superfície escamosa e arranjo linear de vasos pontilhados.7
A dermatoscopia da ML é limitada à observação da distribuição de pigmentos depositados na lâmina ungueal, e as lesões subjacentes podem ser mal‐interpretadas, razão pela qual a dermatoscopia intraoperatória se torna relevante. Hirata et al. definiram quatro padrões da dermatoscopia intraoperatória da matriz e leito ungueal na ML: cinza regular, marrom regular, marrom regular com glóbulos ou manchas e padrão irregular.8 O padrão irregular foi considerado o mais associado ao melanoma,9 e estava presente em nosso caso.
Dentre os achados na dermatoscopia, a hiperceratose localizada da borda livre da lâmina ungueal foi o critério significantemente associado ao CEC subungueal.10 Já no onicomatricoma, os critérios de bordas não paralelas ou difusas das lesões ungueais parecem favorecer o diagnóstico de CEC subungueal, dentre outros menos específicos como hemorragias em estilhaço, linhas brancas longitudinais paralelas e espessamento ungueal.10
A despeito dos achados clínicos, dermatoscópicos da lâmina ungueal e dermatoscópicos intraoperatórios do leito e da matriz ungueais suspeitos de melanoma, a avaliação histológica não mostrou proliferação de melanócitos atípicos, confirmada pela negatividade do HMB45 e da proteína S100. A positividade para AE1/AE3, um anticorpo contra queratinas epidérmicas humanas (portanto, marcador de células epiteliais normais, carcinomas e outros tumores com diferenciação epitelial como a DB) revelou a natureza epitelial da neoplasia no presente caso.
A DB pigmentada do aparelho ungueal é condição raramente diagnosticada, e deve ser considerada no diagnóstico diferencial de ML, distinguindo‐a principalmente do melanoma ungueal.1–5 As alterações adjacentes à ML, como áreas hiperceratóticas da lâmina ungueal, devem ser observadas com atenção e podem auxiliar na diferenciação das lesões queratinocíticas.
A avaliação cuidadosa e o manejo dos pacientes com pigmentação ungueal, em que se considerem as características clínicas, a dermatoscopia da lâmina ungueal e a intraoperatória da matriz ungueal e do leito ungueal, podem auxiliar a afastar as causas comuns de pigmentação ungueal. No entanto, o exame histopatológico ainda permanece o padrão de ouro para o diagnóstico confirmatório da ML.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresGuilherme de Medeiros Holanda: Concepção e planejamento do caso estudado; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica do caso estudado; revisão da literatura; elaboração e redação do manuscrito.
Bruno de Carvalho Fantini: Concepção e planejamento do caso estudado; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica do caso estudado; aprovação da versão final do manuscrito.
Guilherme Raya Ravelli: Aprovação da versão final do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica do caso estudado.
Cacilda da Silva Souza: Concepção e planejamento do caso estudado; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão da literatura; elaboração e redação do manuscrito; aprovação da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Holanda GM, Ravelli GR, Fantini BC, Souza CS. Longitudinal melanonychia: a rare presentation of Bowen's disease. An Bras Dermatol. 2023;98:701–3.
Trabalho realizado no Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil.