Fusariose é infecção superficial ou sistêmica que ocorre principalmente em hospedeiros imunocomprometidos, sobretudo nos portadores de neoplasia hematológica. Em 70% a 75% dos casos, os pacientes apresentam manifestações cutâneas. A forma disseminada é infecção rara, de difícil suspeição diagnóstica, e mesmo com o tratamento específico a evolução costuma ser fatal. Atualmente, é considerada doença emergente e em alguns centros representa a segunda causa mais comum de micose invasiva, após a aspergilose. Descreve‐se caso de paciente do sexo feminino portadora de aplasia medular idiopática e fusariose disseminada, que inicialmente pareceu se beneficiar com o uso de voriconazol e anfotericina B, mas, devido à neutropenia persistente, sua condição clínica se deteriorou com evolução fatal.
A fusariose é doença oportunista, cosmopolita, causada por fungos filamentosos, hialinos do gênero Fusarium, amplamente distribuído na natureza como sapróbio do solo e das plantas1. Raramente acomete indivíduos imunocompetentes, mas, quando ocorre, a infecção geralmente permanece de maneira superficial, causa onicomicose e ceratite, relacionadas à inoculação direta2,3.
Nos imunocomprometidos, sobretudo nos portadores de neoplasia hematológica, em particular a leucemia mieloide aguda, e após transplante de medula óssea, o desenvolvimento de infecção fúngica invasiva está associado à mortalidade de 70%4. Nas infecções disseminadas, 80% dos pacientes desenvolvem lesões de pele e pode ser a única manifestação precoce da doença2,5.
A fusariose em sua forma disseminada é infecção rara, com incidência de 0,06% a 0,2% nos Estados Unidos e na Europa; em pacientes hematológicos, porém, representa complicação de alta morbimortalidade, devido ao aumento de sua incidência e tratamentos poucos efetivos3,6.
O estudo relata um caso de fusariose disseminada com acometimento cutâneo em paciente imunocomprometida devido à aplasia de medula.
Relato do casoPaciente do sexo feminino, 29 anos, previamente hígida, internada em hospital terciário devido ao aparecimento súbito de petéquias nos membros inferiores havia dois meses, associado à febre de início recente. Na internação, foi diagnosticada com pancitopenia e neutropenia febril grave (neutrófilos abaixo de 100 células/mm3); foi iniciada antibioticoterapia de amplo espectro (meropenem e vancomicina).
Na investigação, foi feita biópsia de medula, cujo histopatológico evidenciou hipoplasia de medula das três linhagens hematopoiéticas, com apenas 5% de células. Além disso, foram solicitadas todas as sorologias, inclusive parvovírus B19; descartadas todas as hipóteses infecciosas, concluiu‐se por aplasia medular de etiologia idiopática.
A paciente mantinha quadro de febre persistente apesar da antibioticoterapia, porém sem crescimento bacteriano nas hemoculturas. Devido à instabilidade hemodinâmica, a paciente foi levada para a unidade de terapia intensiva e indicou‐se anfotericina B na dose de 5mg/kg/dia, em decorrência da neutropenia febril não responsiva à antibioticoterapia.
Após o sétimo dia de internação, a paciente apresentou uma mácula eritemato‐violácea, dolorosa, no membro superior esquerdo, que após uma semana evoluiu com necrose central (fig. 1). Foi feita biópsia da lesão, cujo histopatológico foi compatível com vasculite leucocitoclástica com presença de inúmeras hifas na parede dos vasos (fig. 2). Ao exame direto de material da lesão de pele, observaram‐se fungos filamentosos. A cultura em meio de Sabouraud com cloranfenicol do fragmento de pele e posterior microcultivo da colônia evidenciaram o crescimento de Fusarium spp. (figs. 3 e 4). Após os resultados desses exames, a anfotericina B foi associada ao voriconazol e a paciente inicialmente se beneficiou dessa associação.
O exame dermatológico evidenciou ainda paroníquia no segundo e terceiro quirodáctilos esquerdos e livedo reticular exuberante em todo o membro inferior que se estendia até o abdome (fig. 5).
O exame de imagem dos seios da face revelou extenso velamento dos seios maxilares, frontais, esfenoidais e etmoidais e foi atribuído à sinusite invasiva (fig. 6). A equipe de otorrinolaringologia fez biópsia dos seios da face e exame direto da cavidade nasal. O tratamento cirúrgico por meio do desbridamento não foi possível devido à trombocitopenia persistente e angioinvasão das lesões. O histopatológico e o exame direto foram compatíveis com os mesmos achados da lesão cutânea. A paciente apresentava, ainda, extenso infiltrado pulmonar difuso bilateral condizente com pneumonia invasiva.
(A) Tomografia de tórax apresenta padrão de consolidação parenquimatosa com broncogramas aéreos de permeio, notadamente na região posterior dos campos pulmonares (setas pretas). (B, C e D) Tomografia de seios da face evidencia velamento difuso dos seios paranasais, caracterizado por material com densidade de partes moles que preenche os seios maxilares (seta vermelha), esfenoidais (seta amarela), frontais (seta azul) e as células etmoidais (seta branca).
Durante todo o período de neutropenia, a paciente recebeu transfusões e fator estimulador de colônias granulocíticas, porém se manteve sem resposta medular. Após quatro semanas, evoluiu com choque séptico refratário e, apesar das medidas de suporte, veio a óbito 54 dias após a internação.
DiscussãoA fusariose é a segunda infecção fúngica invasiva mais frequente em pacientes com neoplasias hematológicas e o Fusarium solani é a espécie mais comum, virulenta, resistente e de maior mortalidade em comparação às demais espécies, o que foi corroborado no caso apresentado6–8.
A infecção inicia‐se pela inalação de conídios ou pelo contato direto com materiais contaminados pelos esporos1,2. Os estudos descrevem que os casos disseminados geralmente são adquiridos por via inalatória com posterior disseminação para outros órgãos como rins, fígado, olhos, baço e cérebro1,8. No caso relatado, as lesões cutâneas precederam a sinusite e a pneumonia, sugeriram disseminação hematogênica de foco cutâneo. A infecção é classificada como disseminada quando dois ou mais órgãos são envolvidos, como no caso relatado, no qual a paciente apresentou sinusite e pneumonia, comprovadas por exame de imagem e presença de lesões cutâneas4.
A forma mais comum de apresentação é febre persistente não responsiva à antibioticoterapia de amplo espectro, em paciente neutropênico, como a paciente estudada. O envolvimento cutâneo típico mostra máculas ou pápulas eritemato‐violáceos dolorosas, cujo centro evolui para necrose, geralmente nas extremidades, todos os achados descritos no caso. Apresentava, ainda, ao exame dermatológico, livedo reticular em todo o membro inferior até o abdome, que ocorreu provavelmente por proliferação intravascular do fungo e levou à oclusão e à necrose da microvasculatura, embora os autores não tenham encontrado relato na literatura desse fenômeno5,8,9.
O diagnóstico necessita do isolamento de Fusarium spp5. No caso relatado, foram visualizadas hifas nos histopatológicos da pele e de seios da face, confirmado pelo crescimento dos fungos na cultura de amostras coletadas nesses sítios. Nos achados histopatológicos, os fungos caracteristicamente apresentam invasão angiolinfática, observam‐se hifas septadas, hialinas e ramificadas1. A identificação na cultura é importante para auxiliar na diferenciação da fusariose em relação a outras hialo‐hifomicoses. O gênero Fusarium é identificado na cultura pelos múltiplos macroconídios hialinos em forma de canoa6,7. No entanto, a identificação de espécies requer métodos moleculares7.
As infecções invasivas e generalizadas respondem mal à terapia antifúngica, em parte devido à resistência medicamentosa, mas principalmente devido à ausência de resposta efetiva do hospedeiro, o que levou ao desfecho desfavorável da paciente, que se manteve com neutropenia persistente. Portanto, o tratamento é baseado nos antifúngicos sistêmicos e na reversão do estado de imunossupressão. O tratamento ideal deve ser guiado pelo teste de sensibilidade antifúngica, disponível em poucos centros, por isso a maioria dos autores recomenda terapia combinada para os casos graves, com voriconazol e anfotericina B, esquema usado na paciente2,8,10.
A paciente apresentava neutropenia intensa relacionada à aplasia medular e os autores encontraram na literatura três casos de fusariose disseminada associada a essa doença hematológica, todos também com evolução fatal.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresDanielle Ferreira Chagas: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura.
Lucia Martins Diniz: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Elton Almeida Lucas: Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Paulo Sergio Emerich Nogueira: Participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Conflitos de interesseNenhum.