Kerion celsi (KC) é uma tinea capitis (TC) altamente inflamatória que ocorre predominantemente em crianças de áreas rurais e cada vez mais em áreas urbanas, pois os animais de estimação representam importantes reservatórios de infecção.1 Os agentes causadores da tinea capitis abrangem grande variedade de dermatófitos, cuja prevalência é influenciada geograficamente: Microsporum canis representa o agente mais comum na Europa, China e América do Sul; Trichophyton tonsurans na América do Norte e no Reino Unido.2,3
A ocorrência de eritema nodoso (EN), uma paniculite septal incomum em crianças, após KC, pode ser considerada entre as ides por dermatófítos (dermatofitides).4–6 Essa associação foi raramente descrita na literatura, especialmente em crianças, com apenas 17 casos relatados na literatura em inglês nessa faixa etária, principalmente após infecções do couro cabeludo por T. mentagrophytes e principalmente após tratamento antifúngico.7,8 Por outro lado, o aparecimento de EN antes da administração de terapia antifúngica para KC, como no caso apresentado, é incomum, e apenas cinco casos são relatados na literatura (tabela 1).
Revisão da literatura de casos pediátricos de eritema nodoso ocorridos após kerion celsi relatados na literatura em inglês
1o autor | Ano de publicação | Sexo | Idade (em anos) | Agente etiológico | Tempo em dias do tratamento até o desenvolvimento | Tratamento | Tempo de cicatrização do EN após tp (semanas) |
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Franks | 1952 | M | 9 | T. sulphureum | Antes do tratamento | Griseofulvina | NR |
Smith | 1963 | M | 7 | T. mentagrophytes | Antes do tratamento | Griseofulvina+tioconazol tópico | NR |
Stocker | 1977 | F | 12 | T. verrucosum | Antes do tratamento | Griseofulvina | NR |
Martinez‐Roig | 1982 | M | 7 | T. mentagrophytes | 7 | Griseofulvina+solução tópica de permanganato de potássio | NR |
Martinez‐Roig | 1982 | M | 6 | T. mentagrophytes | 7 | Griseofulvina+solução tópica de permanganato de potássio | NR |
Martinez‐Roig | 1982 | M | 8 | T. mentagrophytes | 7 | Griseofulvina+solução tópica de permanganato de potássio | NR |
De las Heras | 1991 | M | 9 | T. mentagrophytes | Antes do tratamento | Griseofulvina+tioconazol tópico | 6 |
Calista | 2001 | F | 5 | T. mentagrophytes | Antes do tratamento | Griseofulvina+violeta de genciana tópico | 6 |
Soria | 2008 | M | 9 | T. mentagrophytes | 16 | Griseofulvina | NR |
Soria | 2008 | M | 11 | T. mentagrophytes | 26 | Griseofulvina+Ibuprofeno | NR |
Bassi | 2009 | F | 8 | T. mentagrophytes | 1 | Griseofulvina | 6 |
Zaraa | 2012 | M | 7 | Parasitismo de grandes esporos | 18 | Griseofulvina+creme de ciclopirox olamina | 12 |
Castriota | 2013 | F | 9 | T. mentagrophytes | 14 | Griseofulvina+creme tópico de mupirocina e tioconazol+prednisona 1 mg/kg/dia | 10 |
Romano | 2014 | F | 4 | T. mentagrophytes | 2 | Griseofulvina+imidazol tópico | NR |
Salah | 2021 | M | 4 | T. mentagrophytes | 20 | Griseofulvina | Nos dias seguintes |
Salah | 2021 | M | 9 | T. mentagrophytes | 7 | Griseofulvina | Nos dias seguintes |
Salah | 2021 | M | 14 | T. mentagrophytes | 14 | Griseofulvina | Nos dias seguintes |
O presente relato de caso descreve paciente do sexo masculino, de 7 anos, que apresentava placa eritematosa e dolorosa no couro cabeludo por um mês antes da consulta e nódulos eritematosos dolorosos bilaterais em membros inferiores havia dez dias. Antibióticos tópicos e orais não foram eficazes.
Ao exame clínico, observou‐se placa occipital dolorosa (3×4cm), eritematosa, com pústulas e crostas, além de perda de cabelos na superfície exsudativa associada à linfadenite occipital (fig. 1). Nos membros inferiores foram evidenciados nódulos eritemato‐violáceos dolorosos e quentes, clinicamente sugestivos de EN (fig. 2).
O exame microscópico de raspados de pele e cabelos confirmou o diagnóstico de dermatofitose zoofílica do couro cabeludo por M. canis (fig. 3). Foi tratado com griseofulvina 250mg, 2×/dia (20mg/kg/dia) por oito semanas, obtendo a remissão de ambas manifestações, confirmando assim a natureza dermatofítica reativa do EN das pernas.
As ides são reações inflamatórias secundárias que se desenvolvem a partir de um insulto imunológico localizado remoto, como infecções fúngicas.4–6 As ides possivelmente exibem múltiplas apresentações clínicas, incluindo lesões vesiculares localizadas ou generalizadas, erupções maculopapulares ou escarlatiniformes, eritema nodoso, eritema multiforme, eritema anular centrífugo, síndrome de Sweet, psoríase gutata e doença bolhosa autoimune.4,6
Os critérios diagnósticos para a reação dermatofítica compreendem: (I) dermatofitose comprovada, (II) erupção em local distante da infecção fúngica e (III) resolução após tratamento antifúngico.7 Com base nesses critérios clínicos, foi realizado o diagnóstico clínico de uma ide dermatofítica do tipo EN.
As ides dermatofíticas ocorrem em até 17% dos pacientes com infecções por dermatófitos, tipicamente após tinea pedis e, em crianças, após tinea capitis, apresentando‐se principalmente como erupções papulovesiculares em regiões acrais e tronco. Além disso, eritema multiforme, eritema anular centrífugo, manifestações urticariformes e eritema nodoso foram descritos, embora raramente.6
Na literatura, a reação do tipo EN foi descrita principalmente após KC por T. mentagrophytes (82%), enquanto nos casos restantes foram relatados T. sulphureum, T. verrucosum e parasitismo geral por grandes esporos; a idade média de início foi de 8 anos (variação de 4 a 14 anos).7,8
O início das reações do tipo EN após KC é variável; é incomum (30%) antes do tratamento próximo ao clímax da infecção, frequentemente (70%) retardado após a administração de antifúngicos, ocorrendo em média 12 dias (variação de 1 a 26 dias) após o uso de antimicóticos.7‐10 Curiosamente, a correlação temporal entre o pico da inflamação e o EN sugere que uma liberação maciça de autoantígenos induzida pela flogose pode ocorrer, apoiando a hipótese autoimune de células T reativas ativadas por liberação maciça de antígenos, possivelmente fúngica ou induzida pela infecção fúngica.4–6
Possivelmente, células T reativas, que são ativadas pela liberação antigênica de um estímulo primário, causando danos aos queratinócitos, podem induzir fenômenos cutâneos com mediação autoimune contra antígenos de queratinócitos autólogos em locais distantes, após disseminação linfocítica. De fato, as ides dermatofíticas são observadas principalmente após formas altamente inflamatórias de dermatofitose, como no caso apresentado aqui, no qual uma grande quantidade de autoantígenos pode ter sido liberada.4–6
É importante ressaltar que o diagnóstico das ides é essencial para o correto manejo do paciente, pois essas reações autoimunes ocorrem principalmente após o início de terapia com agente antimicótico (70%) e podem ser diagnosticadas erroneamente como reações alérgicas a antifúngicos, levando à descontinuação errônea da terapia.
No presente caso, o EN ocorreu 20 dias após a manifestação clínica da dermatofitose, antes da administração oral dos antifúngicos, evitando erros de diagnóstico.
Griseofulvina foi administrada em todos os casos relatados, incluindo o presente caso. Antimicóticos tópicos foram adicionados em 53%, levando à regressão tanto do EN quanto do KC, enfatizando a importância de reconhecer a ligação entre as duas afecções a fim de possibilitar um diagnóstico combinado correto de ambas dermatoses e abordagem terapêutica única e eficaz.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresAstrid Herzum: Concepção e planejamento do estudo; Interpretação dos dados; análise estatística; redação do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Ehab Garibeh: Concepção e planejamento do estudo; interpretação dos dados; redação do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica da literatura; aprovação da versão final do manuscrito.
Lodovica Gariazzo: Concepção e planejamento do estudo; interpretação dos dados; redação do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; aprovação da versão final do manuscrito.
Corrado Occella: Concepção e planejamento do estudo; interpretação dos dados; redação do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; aprovação da versão final do manuscrito.
Gianmaria Viglizzo: Concepção e planejamento do estudo; interpretação dos dados; redação do manuscrito; participação efetiva na orientação da pesquisa; aprovação da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.