A formação de vesículas ou bolhas na dermatomiosite (DM) é extremamente rara, com aproximadamente 68 casos de DM bolhosa (DMB) publicados até o momento.1–7 A DM foi relatada pela primeira vez por Christian em 1903.8 A DMB afeta principalmente mulheres entre a quinta e a sétima décadas de vida. Na DM clássica, a proporção homem:mulher é de 1:2. A DMB favorece a apresentação no sexo feminino, com proporção de 3:1.4 Bolhas na DMB se desenvolvem predominantemente em áreas irritadas com frequência, como áreas extensoras dos membros superiores, joelhos e tronco.4 Séries de casos recentes abordam a importância da correlação entre a DMB e neoplasia.1
Paciente do sexo feminino, de 54 anos, com diagnóstico prévio de câncer de mama, tratada havia três anos com mastectomia parcial, compareceu ao Serviço de Dermatologia com história de três meses de placas eritematosas pruriginosas simétricas em ambas as coxas. Ela havia sido tratada em outro hospital com um curso de 20 dias de prednisolona oral 20mg/dia, com resposta parcial. Nenhum outro tratamento ou vacina foi prescrito. A paciente evoluiu com disseminação das lesões cutâneas ao longo de um mês. O exame físico revelou erupção eritematosa com vesículas e bolhas simétricas na região cervical, abdome, braços, joelhos e coxas (sinal do coldre; fig. 1A e B) e sinal de Gottron (fig. 1C). A mucosa oral não foi afetada. Os exames laboratoriais mostraram níveis séricos aumentados de transaminase glutâmico oxalacética de 211 U/L, PCR 2,1mg/dL e CK total dentro dos limites da normalidade. Antígeno nuclear extraível, fator reumatoide, reagina plasmática rápida, anti‐histona, anti‐DNA e anticorpos antinucleares foram negativos. Os complementos C3 e C4 estavam normais. A histopatologia demonstrou paraceratose focal, degeneração vacuolar na camada basal com edema subepidérmico e formação de bolhas. Havia leve infiltrado linfocitário ao redor de vasos superficiais com poucos neutrófilos e deposição dérmica de mucina (fig. 2). A imunofluorescência direta (IFD) foi apenas focalmente positiva para C3 em vasos superficiais. A imagem de ressonância magnética de extremidades e região cervical mostrou miosite leve dos músculos deltoide e trapézio. O painel de DM revelou positividade para anti‐NPX‐2. Foi realizada triagem paraneoplásica completa, que resultou normal.
(A) Histopatologia na coloração pelo método da Hematoxilina & eosina (10×); alterações vacuolares na camada basal. (B e C) Histopatologia na coloração pelo método da Hematoxilina & eosina (10×) com acentuado edema dérmico e formação de bolhas com discreto infiltrado linfocitário ao redor de vasos superficiais.
Os achados clínicos e histopatológicos, além da positividade para anti‐NPX‐2 e a presença de vesículas, levaram ao diagnóstico de DMB. Foi tratada com tacrolimus oral 3mg/dia, com remissão completa das bolhas e miosite subclínica. O tratamento com tacrolimus foi finalizado em março de 2022 e, até esta publicação, não houve recidiva clínica. A paciente segue em acompanhamento há quatro anos, e nenhuma neoplasia foi diagnosticada.
Como os sinais clínicos são geralmente inespecíficos na DMB, a histopatologia e os marcadores moleculares tornam‐se ferramentas diagnósticas valiosas. A histopatologia da DMB comumente mostra bolhas subepidérmicas com edema dérmico, deposição de mucina e inflamação perivascular superficial. As vesículas são causadas pela acentuada reação inflamatória e edema presentes na derme.4 Em cerca de 35% dos casos, a IFD revela depósitos granulares de imunoglobulinas e complemento na junção dermoepidérmica.9 Além disso, depósitos granulares de C3 e C5b‐9 podem ser encontrados nos vasos, provavelmente como reação inflamatória inespecífica, apoiando o diagnóstico no presente caso.6,9 Os diagnósticos diferenciais incluem: (1) lúpus eritematoso bolhoso – IFD granular ou linear positiva na zona da membrana basal (ZMB) e anticorpos anticolágeno VII; (2) penfigoide bolhoso – IFD linear positiva na ZMB com anticorpos anti‐BP180 ou BP230; (3) dermatite herpetiforme – IFD com depósitos granulares nas papilas dérmicas; e (4) pênfigo – IFD intercelular positiva e anticorpos anti‐desmogleína 1 e 3.10
A DM pode estar associada a doenças bolhosas autoimunes. A disseminação de epítopos foi proposta como explicação, mas sua associação permanece desconhecida.7
A ligação entre DM e câncer é bem conhecida desde 1960.1,6 A associação com DM clássica é de aproximadamente 15%–27%.8 A associação entre câncer e DMB é significantemente maior, variando de 52% a 68% dos pacientes.1,3,7 A acentuada reação inflamatória encontrada na DMB está associada a maior risco paraneoplásico.3,6,7 O prognóstico da DMB é pior quando está associada a neoplasias malignas, que podem se desenvolver nos primeiros três anos após o diagnóstico da DMB.3 Isso enfatiza a importância de uma busca exaustiva por neoplasias em pacientes com diagnóstico de DM, especialmente se a DMB estiver presente. O achado de anti‐NXP‐2 na DM está altamente relacionado ao câncer, como foi demonstrado neste relato.2,7 A DMB também tem sido associada a tumores de pulmão, ovário e esôfago.1,3
A DMB pode ser facilmente diagnosticada incorretamente. A identificação precoce é fundamental para obter melhor prognóstico. Os pacientes devem ser acompanhados de perto para tratamento adequado e rastreamento do câncer. O exame clínico é obrigatório a cada quatro a seis meses por pelo menos três anos, e exames de imagem devem ser realizados a cada seis a 12 meses.3,11
Os autores relatam rara apresentação clínica de DM hipomiopática, na qual a combinação de anamnese, exame físico, exames laboratoriais e de imagem e achados histopatológicos desempenharam papel crucial para o correto diagnóstico. Os autores ressaltam que a DMB deve sempre fazer parte do diagnóstico diferencial das doenças bolhosas.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresFrancisca Reculé: Aprovação da versão final do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito.
Juana Benedetto: Aprovação da versão final do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito.
Catalina Silva‐Hirschberg: Aprovação da versão final do manuscrito; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito.
Raúl Cabrera: Aprovação da versão final do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito.
Alex Castro: Aprovação da versão final do manuscrito; revisão crítica do manuscrito; elaboração e redação do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.