As espécies do complexo Criptococcus neoformans apresentam distintos padrões epidemiológicos na infecção de indivíduos em condições de imunossupressão ou imunocompetência, e comum peculiaridade do tropismo para o sistema nervoso central. A criptococose cutânea primária é uma entidade clínica rara, com manifestações inicialmente restritas à pele por inoculação do fungo, e ausência de doença sistêmica. Relatamos aqui o caso de um homem de 61 anos de idade, imunocompetente, com tumoração mucoide de rápida evolução sobre escoriações em contato com dejetos de pássaros no antebraço. A precocidade do reconhecimento das manifestações cutâneas polimórficas e do tratamento são determinantes para o prognóstico favorável da infecção, que pode ser ameaçadora à vida.
Na criptococose, infecção por leveduras encapsuladas, as espécies Cryptococcus neoformans var. grubii e C. neoformans var. neoformans são associadas ao hospedeiro imunocomprometido ou imunocompetente e hábitat de excretas de aves; e a espécie Cryptococcus gattii, ao hospedeiro imunocompetente e restos vegetais (Eucalyptus camaldulensis) de áreas tropicais e subtropicais.1–3
Seguido à inalação das leveduras, o acometimento pulmonar associado à meningoencefalite pode ocorrer em expressiva frequência dos casos; as manifestações cutâneas ocorrem em 10% a 15%, por disseminação hematogênica da infecção. Já a criptococose cutânea primária (CCP) é uma entidade rara, restrita inicialmente à pele, por inoculação direta do fungo, sem sinais da doença sistêmica.1–4 O quadro cutâneo, primário ou secundário, é polimórfico (pápulas, púrpuras, vesículas/bolhas, pústulas, nódulos, tumorações, ulcerações, paniculite/celulite necrotizante, abscessos similares à acne ou molusco contagioso) e pode postergar o diagnóstico e levar a desfechos desfavoráveis.1–7
A mortalidade, estimada em 10% nos países desenvolvidos, pode se elevar em quatro vezes em países como a Tailândia. Embora rara e de evolução favorável, a CCP pode ser ameaçadora à vida, particularmente em pacientes com doenças subjacentes ou imunocomprometimento, visto a possibilidade de disseminação e acometimento do sistema nervoso central (SNC).1–3,6
Relato do casoHomem, 61 anos de idade, referia pápula pruriginosa e eritematosa no antebraço esquerdo havia 30 dias, que rapidamente progrediu para tumoração dolorosa, friável e de aspecto mucoide (fig. 1A). Notou‐se ausência de febre, queixas sistêmicas e linfonodomegalia, além da presença de escoriações nos antebraços por cuidados com pássaros. A hipótese de CCP e o início do antifúngico foram fundamentados na visualização de estruturas leveduriformes no micológico direto, que foram coradas por Grocott‐Gomori (fig. 2A) e mucicarmim de Mayer no anatomopatológico (fig. 2B); e no crescimento do Criptococcus neoformans na cultura. Sorologia para fungos, incluída criptococose, não foi reagente; ELISA para HIV, negativo; radiografia do tórax e análise liquórica, normais. O tratamento com fluconazol (400mg diários), intravenoso por 30 dias promoveu destacamento da placa mucoide e necrótica (fig. 1B) e foi seguido do uso oral por 11 meses com total re‐epitelização (fig. 1C).
Os critérios para diagnóstico de CCP compreendem: restrição à manifestação cutânea sem evidências de doença sistêmica e cultura positiva para Cryptococcus spp.; além disso, lesão única ou confinada a uma área corporal descoberta (membros ou face), traumas prévios, escoriações, ulcerações ou lesões cutâneas preexistentes no sítio da infecção e exposição à fonte contaminada.2,4
Na revisão de 11 casos de CCP publicados do Brasil em hospedeiros imunocompetentes, notou‐se faixa etária elevada (média 70,91 anos), maioria de homens (81,82%), com trauma prévio e/ou exposição às fontes contaminadas (63,63%) do sítio das lesões, e tempo médio de 62,14 dias (15 a 210 dias) até o diagnóstico. Em comum, acometimento do antebraço, ulceração sobre placas ou nódulos, nodosidades e/ou tumorações de aspecto brilhante, mucoide ou secretivo (gelatinoso); prurido ao início (três casos), dor e necrose (dois casos), cura para a maioria, mas um óbito em paciente com cirrose e abuso de álcool.4–10
Sítio anatômico e estado imune do hospedeiro são definidores do tratamento. Para o manejo das manifestações menos usuais na população HIV negativa com sítio único de infecção, sem evidências de acometimento do SNC, fungemia ou imunossupressão, o fluconazol oral (6mg/kg/dia) por 6 a 12 meses tem sido recomendado.3
Visto que a manifestação cutânea possa preceder infecção disseminada, seu reconhecimento e as intervenções terapêuticas precoces são cruciais para redução de desfechos desfavoráveis.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresCacilda da Silva Souza: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica do caso estudado; revisão crítica da literatura.
Maria Hideko Takada: Aprovação da versão final do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica do caso estudado; revisão crítica do manuscrito.
Marcela Vendruscolo Ambiel: Aprovação da versão final do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica do caso estudado; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Viviane Tiemi Nakai: Aprovação da versão final do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura; revisão crítica do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Silva Souza C, Takada MH, Ambiel MV, Nakai VT. Primary cutaneous cryptococcosis: the importance of early diagnosis. An Bras Dermatol. 2021;96:482–4.
Trabalho realizado na Divisão de Dermatologia, Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil.