O apreço pela beleza física remonta a tempos remotos. O século XX, com suas necessidades socioeconômicas exigentes, trouxe grandes novidades, catalisadas pelas revoluções industrial e petroquímica, sem negligenciar a antiga paixão humana: a busca pela perfeição estética.
Em 1948, o silicone, considerado imunologicamente inerte, despertou interesse da comunidade médica pela necessidade de materiais médicos e cirúrgicos biocompatíveis,1 ganhou importância na cosmiatria. Entretanto, a partir dos anos 1990, começaram a surgir casos de doenças do tecido conjuntivo em pacientes com implantes de silicone, que apresentavam reação tecidual fibrosante similar à esclerodermia. A relação entre implantes de silicone e o surgimento de sintomas inespecíficos, que não satisfazem critérios diagnósticos para doença do tecido conjuntivo, tem sugerido que, de fato, uma síndrome não definida pode ocorrer decorrente de exposição ao silicone.2
A análise dessas manifestações levou à definição da entidade “siliconose”, que inclui mialgia, fadiga anormal, alterações cognitivas, depressão, olhos e boca secos, anormalidades cutâneas, parestesias, edema e sensibilidade nas glândulas axilares, febre de origem indeterminada, alopecia, cefaleia e rigidez matinal.2
Nos últimos anos, além da siliconose, três doenças caracterizadas por respostas imunes hiperativas foram descritas: síndrome da guerra do Golfo, miofasciíte macrofágica e fenômenos pós‐vacinais. Por compartilhar um conjunto de sinais e sintomas semelhantes, essas quatro entidades foram condensadas por Shoenfeld e Agmon‐Levin em 2011 sob o termo ASIA: síndrome autoimune/inflamatória induzida por adjuvantes.2 Por definição, um caso de ASIA caracteriza achados de sintomas e sinais sistêmicos ou doença autoimune, desenvolvidos após exposição a estímulo externo, com produção de anticorpos contra o adjuvante implicado. Os critérios diagnósticos estão listados na tabela 1.2 Ainda sem validação desses critérios, não há consenso na literatura sobre quantos deles devem estar presentes para o diagnóstico de ASIA. Em sua coorte, Watada et al. incluíram como casos da síndrome pacientes que apresentassem pelo menos um critério maior ou um maior e um menor.3
Critérios diagnósticos de ASIA
ABD Critérios sugeridos para o diagnóstico de ASIA |
Critérios maiores |
Exposição a estímulos externos (infecção, vacina, silicone, adjuvante) previamente às manifestações clínicas. |
Aparecimento de manifestações clínicas “típicas”: |
Mialgia, miosite ou fraqueza muscular; |
Artralgia e/ou artrite; |
Fadiga crônica, sono não reparador ou distúrbios do sono; |
Manifestações neurológicas (especialmente as relacionadas à desmielinização); |
Anormalidades cognitivas, perda de memória; |
Febre, boca seca. |
Remoção do agente desencadeante induz melhora clínica. |
Biópsia típica dos órgãos envolvidos. |
Critérios menores |
Surgimento de autoanticorpos ou anticorpos dirigidos contra o adjuvante suspeito; |
Outras manifestações clínicas (p.ex., síndrome do intestino irritável; |
HLA específicos (HLA DRB1, HLA DQB1); |
Desenvolvimento de doença autoimune. |
Adaptada de Shoenfeld & Agmon‐Levin, 2011.2
Descrevemos o caso de uma paciente de 49 anos submetida à injeção de silicone líquido nas nádegas havia 10 anos, com placas acastanhadas, endurecidas e dolorosas na lateral da coxa esquerda havia dois anos (fig. 1). As lesões evoluíram em surtos e remissões espontaneamente e surgiram em concomitância com artralgia inflamatória das mãos e punhos e astenia. Os exames complementares mostraram fator reumatoide de 523, FAN 1:80 nuclear pontilhado fino (restante do painel reumatológico normal), corroboraram diagnóstico de artrite reumatoide (AR). Histopatológico da lesão cutânea evidenciou reação inflamatória crônica com histiócitos xantomizados (fig. 2), pesquisa de BAAR negativa. Foi iniciado tratamento com metotrexato, evolui para controle das lesões cutâneas e do quadro articular.
Nosso relato apresenta três critérios maiores (exposição a silicone; sintomas sistêmicos de astenia e artralgias; histopatológico com inflamação crônica) e dois menores (surgimento de AR e de autoanticorpos), satisfez critérios para o diagnóstico da síndrome, de prognóstico incerto, dada sua relativa novidade.
Vera‐Lastra et al. analisaram 50 casos de pacientes submetidos a injeções de materiais diversos. Os critérios de inclusão foram: história de procedimento injetável; doença autoimune/manifestações inespecíficas; autoanticorpos; evidência histológica de inflamação crônica; ausência de infecções/neoplasias que justificassem o quadro. O tempo médio entre a injeção e o início dos sintomas foi em torno de quatro anos (um mês a 15 anos); 60% apresentaram manifestações autoimunes inespecíficas e 8% desenvolveram AR. Histologicamente, na área de injeção havia granulomas, inflamação crônica, vacúolos de óleo e fibrose,4 achados semelhantes aos do caso descrito.
Quanto ao manejo, Tervaert et al. sugerem correção de hipovitaminose D, se presente, redução da exposição a gatilhos como reações alérgicas e infecções de trato respiratório e cessar tabagismo. Quando possível, deve‐se remover cirurgicamente o adjuvante implicado e, se necessário, usar medicações como doxiciclina, minociclina, hidroxicloroquina e corticoides por via oral ou intravenosa.5
Mediante essa explanação, trazemos à luz um alerta: faz‐se imprescindível conhecer os sintomas e as comorbidades do paciente antes da injeção de substâncias adjuvantes, a fim de se documentar e reconhecer a ASIA, síndrome de recente definição, porém de futuro iminentemente persistente, dada a crescente procura por procedimentos que envolvem injetáveis. Ciente desses dados, o médico pode evitar a deflagração de doenças crônicas de grande impacto, sem prejuízo à saúde do paciente. Permanece ainda mais um questionamento: que outros materiais, hoje considerados biocompatíveis (como outrora fora o silicone), podem deflagrar a síndrome num futuro próximo? Estudos prospectivos e retrospectivos poderão ilustrar o panorama da ASIA dentro das próximas décadas, trazer respostas e, possivelmente, mais indagações.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresCamila Secco Libardi: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura.
Lucia Martins Diniz: Aprovação da versão final do manuscrito; concepção e planejamento do estudo; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica do manuscrito.
Carlos Musso: Aprovação da versão final do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica do manuscrito.
Bruna Anjos Badaró: Concepção e planejamento do estudo; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Conflitos de interesseNenhum.