A esporotricose causada por Sporothrix brasiliensis (S. brasiliensis) é atualmente um grave problema de saúde pública no Brasil, com milhares de casos descritos em quase todos os estados brasileiros.1 O medicamento de primeira escolha para o tratamento da esporotricose é o itraconazol (ITZ), que apresenta taxa de cura de ∼90% em pacientes humanos. A terbinafina (TER) é o tratamento de segunda linha, indicado para falhas terapêuticas ou quando o ITZ é contraindicado.2 Dados sobre o uso de medicamentos antifúngicos em pacientes submetidos à cirurgia de bypass gástrico em Y‐de‐Roux (BGYR) são escassos na literatura científica;3 portanto, o objetivo do presente estudo é relatar dois casos de esporotricose transmitida por gato em pacientes pós‐cirurgia bariátrica no sul do Brasil.
A primeira paciente era uma mulher de 62 anos que se apresentou pela primeira vez ao Sistema Único de Saúde (SUS) em 2022 com lesões ulceradas no membro superior esquerdo. O provável diagnóstico de esporotricose linfocutânea foi estabelecido clínica e epidemiologicamente pelas características das lesões, somadas ao relato de contato com gato doméstico com esporotricose comprovada. Foi iniciado tratamento com ITZ 100mg (12/12 horas). Nas duas semanas seguintes, a paciente relatou piora das lesões cutâneas e surgimento de novas lesões em outros sítios anatômicos (máculas e nódulos eritematosos nos membros inferiores e membro superior direito e lesões pustulosas na região cervical). As lesões eritematosas nodulares e artralgia eram compatíveis com a manifestação clínica de eritema nodoso, reação de hipersensibilidade à esporotricose. Nesse momento, a paciente procurou atendimento dermatológico particular e foi encaminhada ao Serviço Especializado de Referência (SER) do Hospital Universitário (HU) da Universidade Federal do Rio Grande/Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (FURG/Ebserh).4 No SER, em setembro de 2022, a paciente relatou histórico de cirurgia de BGYR realizada em 2021. Em virtude do histórico de não resposta ao tratamento de primeira escolha, e tendo em vista que a análise dos níveis plasmáticos de ITZ não estava disponível no serviço, foi alterada a conduta terapêutica para TER 250mg (12/12 horas). A paciente permaneceu em terapia por 140 dias, apresentando regressão total das lesões após esse período (tabela 1 e fig. 1).
Dados clínico‐epidemiológicos referentes a dois casos de esporotricose transmitida por gato em pacientes com histórico de bypass gástrico em Y‐de‐Roux relatados no sul do Brasil
Caso #1 | Caso #2 | |
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Tipo de diagnóstico/data | Provável / 2022 | Provável / 2023 |
Apresentação clínica | Linfocutânea | Linfocutânea |
Local e tipo de lesões | Ulcerocrostosas nos membros superiores e inferiores e nodular na região cervical anterior + RHa | Nodular na mão direita |
Data do bypass gástrico em Y‐de‐Roux | Três anos antes | Cinco anos antes |
Tratamento inicial | ITZ 100mg (12/12h) | ITZ 100mg (12/12h) |
Tratamento modificado | TER 250mg (12/12h) | TER 250 mg/dia |
Tempo de tratamento (somente modificado) | 140 dias | 106 dias |
Dois casos de esporotricose transmitida por gato em pacientes com histórico de bypass gástrico em Y‐de‐Roux relatados no sul do Brasil. #Caso 1: (A e C) Lesões em membros inferiores e região cervical, respectivamente, no momento do diagnóstico (16/09/2022). (B e D) Lesões após 30 dias de tratamento (22/09/2022). #Caso 2: E, Lesão no momento do diagnóstico (27/06/2023). F, Lesão após 106 dias de tratamento (28/09/2023).
A segunda paciente era uma mulher de 48 anos com histórico de cirurgia de BGYR em 2019. Ela foi admitida no SER em junho de 2023 com lesão nodular na mão direita, compatível com apresentação linfocutânea de esporotricose (fig. 1). A paciente relatou arranhão anterior por gato doméstico com esporotricose comprovada, seguido por duas visitas anteriores ao SUS, onde lhe foram prescritos antibacterianos (azitromicina ou cefalexina) e anti‐inflamatórios não esteroides. Ela também relatou ter utilizado terapia antifúngica (ITZ 100mg; 12/12 horas) por 14 dias por conta própria, sem melhora das lesões. O ITZ foi descontinuado e TER 250mg/dia foi prescrita. A cura da esporotricose foi alcançada após 106 dias de tratamento.
São relatados dois casos de falha terapêutica usando ITZ em pacientes bariátricos no sul do Brasil.2 Estes são os primeiros relatos dessa infecção fúngica emergente em pacientes submetidos a BGYR em área hiperendêmica onde a esporotricose zoonótica tem sido descrita desde a década de 1990.1 O presente relato também contribui para documentar mais um caso de reação de hipersensibilidade na região sul do Brasil. De fato, as reações de hipersensibilidade são manifestação crescente no território brasileiro, associadas à epidemiologia zoonótica da esporotricose.5,6
Presume‐se que a falha terapêutica com ITZ ocorreu em virtude da cirurgia BGYR no trato gastrontestinal (TGI), que resultou em restrição disabsortiva pela modificação da estrutura anatômica e fisiológica do TGI. De fato, a cirurgia BGYR teve impacto direto na farmacodinâmica e farmacocinética de medicamentos ingeridos por via oral. A diminuição da motilidade gástrica, e do volume da secreção biliar leva a um pH mais alcalino e metabolismo de primeira passagem reduzido.7 Para o ITZ, a falta de atividade é decorrente de sua natureza lipofílica, que requer ionização e absorção em pH baixo (1‐3).8 Portanto, em pacientes com BGYR, o uso de ITZ deve ser acompanhado por monitoramento terapêutico do medicamento, medindo sua concentração plasmática.9
Os presentes relatos adicionam dados sobre pacientes submetidos à cirurgia bariátrica do tipo BGYR, que desenvolveram esporotricose, mostrando a importância de estar ciente da possibilidade de falhas terapêuticas com o medicamento de escolha para tratamento dessa micose.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresMaria Eduarda Resende Melo: Elaboração e edição do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica do manuscrito.
Melissa Orzechowski Xavier: Elaboração e edição do manuscrito.
Rossana Patricia Basso: Obtenção, análise e interpretação dos dados; metodologia.
Karine Ortiz Sanchotene: Obtenção, análise e interpretação dos dados.
Fabiana Fedatto Bernardon: Metodologia.
Vanice Rodrigues Poester: Elaboração e edição do manuscrito; revisão crítica do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Melo ME, Xavier MO, Basso RP, Sanchotene KO, Bernardon FF, Poester VR. Bariatric surgery complicating the treatment of choice for Sporotrichosis: report of two cases. An Bras Dermatol. 2025;100. https://doi.org/10.1016/j.abd.2024.07.005.
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil.