Líquen plano é doença inflamatória que pode afetar tanto a pele quanto as mucosas, incluindo a mucosa oral. A literatura dermatológica brasileira acerca do líquen plano oral é escassa.
ObjetivoApresentar os achados clínicos, patológicos e de tratamento de 201 pacientes com diagnóstico de líquen plano oral acompanhados no Ambulatório de Estomatologia do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, de 2003 a 2021.
MétodoAnalisamos o perfil demográfico dos pacientes, a morfotopografia das lesões, os tratamentos utilizados e a eventual presença de carcinoma epidermoide.
ResultadosA doença mostrou‐se mais comum em mulheres a partir dos 50 anos e exibiu tendência à cronicidade, com grande número de casos apresentando sequelas cicatriciais na mucosa oral. O tratamento tópico com corticosteroides potentes mostrou‐se eficaz na grande maioria dos casos. Carcinoma epidermoide sobre sequelas de líquen plano oral foi observado em oito casos.
Limitações do estudoEstudo retrospectivo de prontuários, em que há falhas no preenchimento de dados; tempo de observação desigual entre os casos estudados.
ConclusõesEsta é a maior série dermatológica brasileira acerca do líquen plano oral. A resposta à corticoterapia tópica na grande maioria dos casos foi excelente; houve alta prevalência de sequelas atróficas, demonstrando a cronicidade e o potencial de destruição tecidual dessa doença, o que pode explicar a grande quantidade de casos de carcinoma epidermoide observada.
Líquen plano (LP) é doença inflamatória de causa desconhecida, frequente, que pode afetar tanto a pele quanto as mucosas, incluindo a mucosa oral. Acredita‐se que o líquen plano oral (LPO) acometa 0,5%‐2% da população adulta; a grande maioria dos casos é leve.1 Sabidamente, é mais frequente nas mulheres e se distribui por todos os tipos étnicos, apesar de ter sido observado mais em caucasianos nas pouquíssimas séries em que esse último aspecto foi documentado.2 Enquanto as lesões cutâneas de LP em geral são autolimitadas, evoluindo quase sempre por surtos, as lesões de LPO mais comumente tendem a ser crônicas e persistentes se não tratadas; por isso, sequelas cicatriciais podem evoluir com o aparecimento, a exemplo do que ocorre com as outras formas protraídas da enfermidade, como o LP ungueal (anoníquia) e o LP pilar (alopecia).3
A causa do LPO é desconhecida e inclui mecanismos inflamatórios específicos (ação citotóxica de linfócitos TCD8+) e não específicos (ativação de mateloproteinases). Os dois mecanismos culminam com acúmulo de linfócitos T na lâmina própria, agressão à membrana basal, migração intraepitelial de células T e apoptose de queratinócitos.4
Classicamente, as apresentações clínicas do LPO incluem lesões papulosas, reticuladas, anulares, atróficas, eritematosas, bolhosas e erosivas, o que traduz as variações de intensidade e duração do processo inflamatório.3 Um mesmo paciente pode apresentar mais de uma forma clínica da doença, e a morfologia predominante pode mudar ao longo do tempo.3 Os locais mais acometidos pelo LPO são mucosa jugal, gengiva, dorso da língua, mucosa labial e vermelhidão dos lábios. As formas erosivas são as mais relevantes clinicamente, já que provocam grande desconforto e dor.
Neste trabalho, é apresentada a casuística e a experiência clínico‐patológica e terapêutica com LPO, do Ambulatório de Estomatologia da Divisão de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. É relatado e estudado também, quando presente, o comprometimento simultâneo de outras áreas do tegumento.
MétodoRealizamos estudo retrospectivo, longitudinal e descritivo que incluiu todos os pacientes com diagnóstico de LPO avaliados pelo Ambulatório de Estomatologia da Divisão de Dermatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Foram avaliados os prontuários de 201 pacientes, de 2003 a 2021, e foram incluídos os casos com diagnóstico clínico e/ou histopatológico de LPO. Casos de lesões liquenoides semelhantes ao LPO, como doença enxerto‐versus‐hospedeiro liquenoide, mucosites liquenoides por amálgama dentário, erupções medicamentosas liquenoides e pênfigo paraneoplásico de padrão liquenoide não foram incluídos no estudo. A revisão retrospectiva dos prontuários dos casos com doença confirmada foi realizada para se obter as seguintes variáveis: idade ao diagnóstico, gênero, morfotopografia, quadro clínico, tratamentos realizados e presença de neoplasia oral associada.
ResultadoOs principais achados encontram‐se compilados na tabela 1.
Características principais dos casos estudados de líquen plano oral
Indivíduos, n | 201 |
Período estudado (anos) | 18 |
Características | |
Sexo | |
Masculino | 31,4% (63) |
Feminino | 68,3% (138) |
Média etária,±desvio‐padrão | 55 anos (9‐86 anos),±14,0225 |
0‐19 anos | 2 |
20‐39 | 25 |
40‐59 | 96 |
60–79 | 72 |
≥ 80 | 6 |
Localização do líquen plano | |
Oral apenas | 59,7% (120) |
Mais pele | 23,3% (47) |
Mais genital | 4,9% (10) |
Mais unhas | 2,5% (5) |
Mais couro cabeludo | 1% (2) |
Duas ou mais localizações | 7% (14) |
Localização das lesões na boca | |
Mucosa jugal | 67,6% (136) |
Língua | 41,8% (84) |
Gengiva | 32,3% (65) |
Lábio inferior | 7,5% (15) |
Lábio superior | 1,5% (3) |
Palato | 1% (2) |
Característica das lesões ativas (é comum diferentes lesões num mesmo paciente) | |
Leucoceratósica (papulosa, arboriforme, anular) | 68,1% (137) |
Erosiva | 33,3% (67) |
Gengivite descamativa | 20,4% (41) |
Tratamento | |
Tópico | |
Corticosteroides | 60,7% (122) |
Inibidores de calcineurina | 6,5% (13) |
Lubrificantes orais (sequelas) | 17,4% (35) |
Sistêmico (ver texto) | |
Prednisona | 12,9% (26) |
Talidomida | 4% (8) |
Azatioprina | 1,5% (3) |
Micofenolato‐mofetil | 1% (2) |
Metotrexato | 0,5% (1) |
O diagnóstico foi confirmado por exame histopatológico em 77,1% dos casos. A biópsia foi realizada nas lesões orais em 64% dos pacientes. Nos demais, o procedimento foi realizado nas lesões de LP de outras topografias, e feita a correlação com a doença oral. Em 22,9% dos casos, o diagnóstico foi firmado apenas por meio do exame clínico, em decorrência de abandono antes da biopsia ou, mais frequentemente, pela biopsia já ter sido realizada em outro serviço. O exame de imunofluorescência direta de material da biopsia foi realizado em todas as biopsias de mucosa oral por nós efetuadas e mostrou, em todos os casos, positividade para IgM nos corpos citoides situados da lâmina própria.
O tratamento foi realizado em 82,5% dos casos, norteado pela gravidade e sintomatologia. De 166 pacientes tratados, o tratamento tópico exclusivo, seja com corticosteroides (122 casos) ou inibidores de calcineurina (13), foi suficiente para o controle de 80,7% dos casos (alguns pacientes utilizaram mais de um medicamento). Os restantes 17,4% dos pacientes tratados topicamente tratavam‐se de casos de longa evolução, já sem lesões ativas, em que se observavam apenas sequelas atróficas e despapilação lingual, para os quais apenas bochechos com ureia a 10% em água foram utilizados para alívio sintomático.
Tratamento sistêmico foi instituído em 19,3% dos casos, indicado unicamente em decorrência do quadro de LPO em apenas 3,6% dos pacientes (casos em que o acometimento se estendia por quase toda a mucosa, impossibilitando a aplicação local do medicamento). Nos demais casos, a indicação de medicação oral foi decorrente de acometimento simultâneo grave de outros locais (pele, mucosa genital, unhas). Dos medicamentos sistêmicos, o mais utilizado foi a prednisona (26 pacientes), seguido de talidomida (8), azatioprina (3), micofenolato de mofetila (2) e metotrexato (1). Alguns desses utilizavam simultaneamente o tratamento tópico.
Carcinoma epidermoide associado a lesões de LPO foi observado em oito pacientes (4%), com confirmação histopatológica. Desses, as idades variaram entre 55 e 73 anos, dos quais cinco eram do sexo feminino e três do sexo masculino. Em todos eles, o LPO era de longa evolução e apresentava sequelas cicatriciais na mucosa.
DiscussãoHá pouquíssimos relatos de séries de LPO no Brasil. A maioria das publicações sobre a doença vem da literatura odontológica,2 que, infelizmente, não aborda a enfermidade em todos os seus aspectos, e falha na referência às manifestações extraorais. Uma série brasileira recente relatou 41 pacientes, sem nenhuma menção a outras localizações da doença que não a mucosa oral.5 A maior série internacional publicada por dermatologistas também não destacou o envolvimento extracutâneo.6
Comprometimento extraoral foi observado concomitantemente em 40% dos nossos pacientes – um valor alto, que pode ser decorrente do fato de estarmos em um serviço de Dermatologia de alta complexidade. Quase todos esses casos apresentavam comprometimento mucoso grave e foram encaminhados para tratamento pelo grupo de Estomatologia durante o acompanhamento do LP nas outras localizações do tegumento. Alguns casos caracterizavam a chamada “síndrome vulvo‐gengival”, que pode evoluir com importantes sequelas.3 Casos com comprometimento predominantemente cutâneo e com lesões orais pouco significantes acabam não sendo vistos por nosso grupo. Esse aspecto pode se constituir um viés de maior gravidade em nossos casos se considerarmos todo o universo de casos de LPO na população.
Houve nítida predominância de pacientes acima dos 50 anos, havendo apenas dois casos com menos de 20 anos. A maior série de casos pediátricos de LPO já publicada relatou oito pacientes, no entanto sem explicitar o número de casos abrangendo todas as faixas etárias da qual a série foi obtida.7
Acreditamos que a tradicional classificação das lesões de LPO em múltiplas “formas clínicas” (papulosa, reticulada, anular, ceratósica, erosiva, atrófica), utilizada na maioria das publicações,2,5 não tem muita influência no manejo dos casos, já que todas essas apresentações simplesmente representam diferenças quanto à intensidade, velocidade e antiguidade do processo inflamatório na mucosa; é inclusive muito comum o paciente apresentar mais de um desses padrões simultaneamente (fig. 1). Assim, os casos aqui incluídos foram estratificados por um parâmetro com base na compreensão do processo patológico, em apresentações leucoceratósicas (estáveis, pouco sintomáticas), erosivas (intensas, sintomáticas) e atróficas (sequelares, de longa duração), já que nessas três categorias irão se encontrar as principais variáveis quanto a sintomatologia, indicação terapêutica e prognose, impactando assim a conduta. Dessa maneira, aproximadamente metade dos pacientes tinha apresentações sintomáticas e tendendo a sequelas, apesar de muitos apresentarem, simultaneamente, lesões papuloceratósicas (ver tabela 1).
A chamada gengivite descamativa é apresentação erosiva característica, com comprometimento das gengivas. É de difícil diagnóstico clínico quando o quadro afeta apenas essa região, já que, além do LPO, esse aspecto pode ser observado também no pênfigo vulgar e no penfigoide das membranas mucosas. A histopatologia é imperativa para a correta diagnose.8
O exame diagnóstico mais utilizado para o LPO continua sendo o exame histopatológico, realizado na grande maioria dos nossos casos. Os critérios para a diagnose histopatológica da enfermidade são bem estabelecidos,3 e a biopsia é de fácil realização. A imunofluorescência direta apresenta uniformemente o achado de positividade para IgM nos corpos citoides situados na lâmina própria, porém pode‐se perfeitamente prescindir desse exame na diagnose do LPO. Nos últimos anos, métodos não invasivos como a microscopia confocal reflectante têm sido experimentados na diagnose de doenças inflamatórias mucosas, com resultados muito promissores.8
Não fizemos investigação sistemática da presença de infecção pelo vírus da hepatite C em nossos pacientes.6 Em nossa experiência, é excepcional se detectar a infecção por esse vírus a partir de casos de LPO. O que ocorre mais comumente é que alguns poucos pacientes, sabidamente portadores do vírus, podem, no curso da enfermidade, desenvolver LPO, não se justificando, assim, essa investigação em todos os casos.
Os casos considerados graves (LP erosivo e gengivite descamativa) foram observados em 54% dos pacientes, sendo tratados de maneira mais incisiva e acompanhados minuciosamente. Esses pacientes muitas vezes, durante o tratamento e após o controle, evoluíram com o surgimento de sequelas atrófico‐cicatriciais mucosas; uma vez cessada a atividade de doença, eram tratados apenas sintomaticamente e acompanhados a longo prazo, para se detectarem precocemente eventuais complicações (ver adiante).
Uma recente revisão sobre LPO propõe um algoritmo para tratamento do LPO, com medidas que vão da simples observação, passando pela terapêutica tópica com corticosteroides ou inibidores de calcineurina, e chegando aos tratamentos sistêmicos, iniciando com a corticoterapia oral e progredindo para os imunossupressores e agentes biológicos.9 Em nossa experiência e casuística, o uso de corticosteroides tópicos potentes (clobetasol) em veículo orabase foi suficiente para se controlar quase a totalidade dos casos de LPO sintomático. O tratamento sistêmico foi necessário apenas nos casos em que as lesões ocupavam múltiplos sítios da mucosa, impossibilitando a aplicação da pomada, e nos casos em que havia manifestações extraorais significantes. A boa resposta do LPO à medicação tópica decorre do fato de que as lesões que requerem tratamento são as erosivas (muito sintomáticas), e nessas, o infiltrado inflamatório é facilmente atingido pela medicação, devido à perda do epitélio de revestimento na lesão. Do ponto de vista prático, a medicação é aplicada três vezes ao dia e, à noite, é aplicada solução de nistatina para se prevenir o aparecimento da candidose oral, muito comum quando se utilizam corticosteroides tópicos potentes na mucosa.
O acompanhamento a longo prazo dos pacientes com LPO se faz necessário pela cronicidade dessa doença. Mais até do que surtos de atividade, o que se observa ao longo dos anos é o aparecimento de sequelas, caracterizadas por atrofia da mucosa, despapilação lingual, cicatrizes leucoceratósicas e até sinéquias comprometendo o sulco gengival ou o freio lingual (fig. 2). Essas sequelas são, por vezes, muito incômodas para o paciente, principalmente a despapilação lingual, que ocasiona perda de proteção e superficialização dos receptores gustativos, levando a intensa sensibilidade local aos alimentos e líquidos. Dificuldade na higienização dentária pode ocorrer em decorrência de sinéquias no sulco gengival.
Essas áreas cicatriciais podem, a longo prazo, ser sede de complicações como o aparecimento de carcinoma epidermoide (CEC). Muitas publicações discutem um dito “potencial de malignização” do LPO. Diversos estudos tentam relacionar um pretenso risco aumentado de “transformação maligna” das lesões de LPO em CEC, variando esse “risco” entre 0,4% e 5%, com períodos de observação que variaram de seis meses a 20 anos.10 Na verdade, o que raramente ocorre é um fenômeno há muito descrito e reconhecido pelos dermatologistas: o eventual aparecimento do CEC em áreas de cicatrização viciosa e em sequelas de distintas dermatoses. Exemplos clássicos são o aparecimento do CEC em sequelas cicatriciais de queimaduras, lúpus vulgar, lúpus eritematoso discoide, epidermólise bolhosa distrófica, hidradenite e poroceratose, entre outras doenças, sendo então esse tumor denominado “úlcera de Marjolin”.11 O CEC só aparecerá em casos de LPO de longa duração e presença de intensa cicatrização mucosa sequelar, daí a importância de seguimento a longo prazo. O CEC é muito raro em associação ao LP cutâneo, já que este raramente evolui com sequelas cicatriciais, mas pode eventualmente ocorrer.12
Na presente casuística, o encontro de oito casos de CEC associado ao LPO, um número relativamente alto, pode ser decorrente do acompanhamento por muitos anos de casos que apresentavam sequelas atróficas. Desses, sete casos apresentaram lesões pequenas, facilmente tratáveis. Apenas uma paciente apresentava extensa tumoração vegetante, já observada em sua primeira consulta.
ConclusãoApresentamos aqui a maior série brasileira de LPO em um serviço de Dermatologia. Dos dados significantes obtidos, salientamos o forte predomínio em mulheres acima dos 50 anos, a excelente resposta à corticoterapia local na grande maioria dos casos e a alta prevalência de lesões atrófico‐sequelares, demonstrando a cronicidade e o potencial de destruição tecidual dessa doença.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresAline Erthal: Coleta dos dados; redação do artigo.
Silvia Vanessa Lourenço: Revisão final; idealização do estudo.
Marcello Menta Simonsen Nico: Revisão bibliográfica; revisão final; idealização do estudo.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Erthal A, Lourenço SV, Nico MMS. Oral lichen planus: case series and experience in a tertiary dermatology service in Brazil. An Bras Dermatol. 2023;98:493–7.
Trabalho realizado na Divisão de Dermatologia, Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.