A espessura do melanoma é importante fator prognóstico e é fundamental para o estadiamento, que depende do estudo histopatológico. Existe risco de subestimação da espessura numa biópsia incisional, caso esta não seja realizada na zona onde a espessura é máxima. Isso acarreta um claro impacto na decisão terapêutica, em especial quanto às margens de excisão e a realização ou não de biópsia de linfonodo sentinela.
ObjetivoAvaliar a relação entre a espessura e diversas variáveis dermatoscópicas, demográficas, epidemiológicas e clínicas, procurando identificar fatores preditivos de espessura> 1 mm.
MétodosEstudo observacional e transversal realizado em pacientes diagnosticados com melanoma num único centro num período de quatro anos. Foram coletadas variáveis anatomopatológicas (espessura), dermatoscópicas, demográficas, epidemiológicas e clínicas. Avaliou‐se a associação das variáveis com a espessura do melanoma.
ResultadosForam incluídos 119 doentes. A presença de vasos atípicos à dermatoscopia foi um fator preditivo independente de espessura> 1 mm. Ao contrário, a presença de um padrão reticular atípico é preditiva de melanomas de espessura <1 mm. Na análise univariada, a presença de efélides e a história de queimadura solar prévia associaram‐se igualmente a melanomas de espessura <1 mm.
Limitações do estudoFalta de dados relativos a algumas variáveis e ausência de correlação ótima entre a análise dermatoscópica e o exame anatomopatológico.
ConclusãoO padrão vascular atípico relaciona‐se com uma espessura> 1 mm, auxiliando na escolha do melhor local para a realização de biópsia incisional, no caso de biópsia excisional impraticável.
Um dos principais fatores de prognóstico do melanoma é a espessura do tumor primário, medida em milímetros desde a camada granulosa da epiderme ou base de uma úlcera superficial até a localização mais profunda das células malignas, excluindo a invasão folicular e com aproximação de 0,1mm.1,2 Quanto maior a espessura, maior o risco de metastização.3 Para uma espessura <1,0mm, na ausência de ulceração e de um número de mitoses> 1mm2, a taxa de positividade do linfonodo sentinela é inferior a 6%, sendo de pelo menos 14% para espessuras> 1,0mm, pelo que, neste último caso, está recomendado realizar a biópsia de linfonodo sentinela.4 Além da decisão acerca da pesquisa do linfonodo sentinela, a espessura influencia também a extensão das margens de resseção cirúrgica.3,5 A biópsia de uma lesão suspeita de melanoma deve ser, tanto quanto possível, excisional, de modo a que a decisão terapêutica esteja fundamentada em parâmetros de estadiamento precisos.2 As biópsias incisionais podem subvalorizar a espessura em 5 a 22% dos casos,6 baseando‐se numa colheita por amostragem que nem sempre representa a zona de maior espessura tumoral.
A dermatoscopia é técnica que permite aumentar a acuidade diagnóstica no melanoma.7 Alguns estudos evidenciaram sua capacidade de inferir características histológicas, nomeadamente a espessura, o índice mitótico e a presença de ulceração.8–12 Porém, a literatura mais recente é pouco abundante nesse contexto, e a aplicação concreta dos resultados é pouco explorada.
Desse modo, este trabalho tem como objetivo primário estudar a relação entre a espessura do melanoma e as variáveis dermatoscópicas e, em segundo lugar, entre a espessura e as variáveis demográficas, epidemiológicas e clínicas, procurando identificar fatores preditivos da espessura do melanoma.
Material e métodosRealizou‐se estudo analítico, observacional e transversal numa amostra de doentes diagnosticados com melanoma cutâneo, no Serviço de Dermatologia e Venereologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, entre janeiro de 2014 e dezembro de 2017.
Para a seleção, teve‐se em conta os seguintes critérios de inclusão: diagnóstico definitivo de melanoma cutâneo localizado na cabeça e pescoço, tronco, membro superior, mão, membro inferior ou pé, e presença de dados clínicos relativos ao exame dermatoscópico e anatomopatológico.
Consultou‐se o processo clínico dos doentes selecionados para coleta de variáveis demográficas (idade e sexo), epidemiológicas (fototipo, cor dos olhos, cor dos cabelos aos 18 anos, presença de efélides, presença de lentigos solares, história de queimadura solar com eritema e bolhas, número de nevos melanocíticos de dimensão> 2mm segundo a definição da International Agency Research on Cancer, presença de nevos atípicos segundo os critérios do ABCDE e presença de queratoses actínicas), clínicas (localização do melanoma, assimetria, bordo, coloração, mudança de dimensão nos últimos 12 meses e mudança de coloração nos últimos 12 meses), dermatoscópicas (padrão dermatoscópico, presença de rede ou pseudo‐rede pigmentada atípica, presença de rede negativa, presença de pontos ou glóbulos irregulares, presença de hipopigmentação, presença de estrias ou pseudópodes, presença de véu azul‐acinzentado, presença de vasos atípicos e presença de linhas brancas brilhantes) e anatomopatológicas (espessura ou índice de Breslow).
A análise estatística foi realizada com recurso ao Statistical Package for the Social Sciences (SPSS®), versão 25, com um nível de significância definido de 0,05. As variáveis foram representadas por meio de sua frequência relativa e absoluta. O teste do Qui‐Quadrado e o teste de Fisher foram usados para estabelecer associações entre as variáveis recolhidas. A regressão logística binária univariada e multivariada possibilitou determinar fatores preditivos de uma espessura> 1mm.
O estudo foi realizado de acordo com as recomendações da Declaração de Helsinque da Organização Mundial da Saúde e aprovado pela Comissão de Ética do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
Esta pesquisa não recebeu nenhum financiamento específico de agências públicas, privadas ou sem fins lucrativos.
ResultadosForam diagnosticados 314 doentes com melanoma maligno cutâneo no período temporal referido. Foram excluídos 195 casos por ausência de registo das variáveis dermatoscópicas em estudo, tendo sido incluídos os restantes 119 casos.
As características demográficas e clínicas dos indivíduos incluídos estão representadas na tabela 1. A maioria dos doentes (94,1%; n=112) tinha pelo menos 40 anos à época do diagnóstico e era do sexo masculino (51,3%; n=61). Os melanomas malignos estavam localizados principalmente no tronco (35,3%; n=42). Registaram‐se frequências semelhantes relativamente à espessura do melanoma.
Caracterização demográfica e clínica da amostra
Variável, % (n) | (n=119) |
---|---|
Idade | |
<40 anos | 5,9 (7) |
≥ 40 anos | 94,1 (112) |
Sexo | |
Homem | 48,7 (58) |
Mulher | 51,3 (61) |
Localização | |
Tronco | 35,3 (42) |
Cabeça e pescoço | 27,7 (33) |
Membro inferior (exceto pé) | 16,0 (19) |
Pé | 11,8 (14) |
Membro superior (exceto mão) | 5,9 (7) |
Mão | 3,4 (4) |
Espessura | |
≤ 1 mm | 49,6 (59) |
> 1 mm | 50,4 (60) |
O padrão dermatoscópico multicomponente (54,2%) esteve associado a uma espessura> 1mm, enquanto o padrão reticular (52,5%) foi o mais frequente em melanomas com espessura <1mm (p <0,001). A presença de rede/pseudo‐rede pigmentar atípica (86,4%; p <0,001) e de rede pigmentar negativa (8,6%; p=0,027) esteve associada a uma espessura ≤ 1mm, enquanto a presença de um padrão vascular atípico (65,0%; p <0,001) e de linhas brancas brilhantes (18,3%; p=0,003) foi mais frequente nos melanomas com espessura> 1mm (tabela 2).
Associação entre espessura e variáveis dermatoscópicas em doentes com melanoma maligno
Variáveis | Espessura, % (n) | Valor p | |
---|---|---|---|
≤ 1mm (n=59) | > 1mm (n=60) | ||
Padrão | <0,001 | ||
Homogêneo | 0,0 (0) | 6,8 (4) | |
Multicomponente | 27,1 (16) | 54,2 (32) | |
Reticular | 52,5 (31) | 10,2 (6) | |
Paralelo das cristas | 3,4 (2) | 5,1 (3) | |
Outro | 16,9 (10) | 23,7 (14) | |
Rede/pseudo‐rede pigmentar atípica | 86,4 (51) | 51,7 (31) | <0,001 |
Rede pigmentar negativa | 8,6 (5) | 0,0 (0) | 0,027 |
Pontos e/ou glóbulos irregulares | 40,7 (24) | 36,7 (22) | 0,653 |
Despigmentação/hipopigmentação | 27,6 (16) | 26,7 (16) | 0,911 |
Estrias/pseudópodos | 22,4 (13) | 15,0 (9) | 0,301 |
Véu azul‐acinzentado | 28,8 (17) | 41,7 (25) | 0,142 |
Padrão vascular atípico | 18,6 (11) | 65,0 (39) | <0,001 |
Linhas brancas brilhantes | 1,7 (1) | 18,3 (11) | 0,003 |
A tabela 3 compara a distribuição de variáveis demográficas e epidemiológicas entre pacientes com melanoma maligno de diferentes espessuras. A frequência de indivíduos com mais de 40 anos (98,3%; p=0,049) foi significativamente superior quando a espessura era> 1mm, e essa característica esteve associada a uma menor frequência de efélides (1,7%; p=0,032) e de queimaduras solares prévias (42,1%; p=0,032). Sexo, fototipo, cor dos olhos, cor do cabelo, presença de lentigos solares, número de nevos melanocíticos e presença de nevos atípicos e queratoses actínicas não diferiu significativamente de acordo com a espessura do melanoma.
Associação entre espessura e variáveis demográficas e epidemiológicas em doentes com melanoma maligno
Variáveis | Espessura, % (n) | Valor p | |
---|---|---|---|
≤ 1 mm(n=59) | > 1 mm(n=60) | ||
Sexo | 0,312 | ||
Masculino | 44,1 (26) | 53,3 (32) | |
Feminino | 55,9 (33) | 46,7 (28) | |
Idade | 0,049 | ||
<40 anos | 10,2 (6) | 1,7 (1) | |
≥ 40 anos | 89,8 (53) | 98,3 (59) | |
Fototipo | 0,320 | ||
I | 1,7 (1) | 1,7 (1) | |
II | 16,9 (10) | 30,5 (18) | |
III | 64,4 (38) | 57,6 (34) | |
IV | 16,9 (10) | 10,2 (6) | |
Cor dos olhos | 0,724 | ||
Verde | 18,6 (11) | 20,3 (12) | |
Castanho | 61,0 (36) | 54,2 (32) | |
Azul | 18,6 (11) | 20,3 (12) | |
Preto | 1,7 (1) | 5,1 (3) | |
Cor dos cabelos aos 18 anos | 0,592 | ||
Loiro | 10,2 (6) | 18,6 (11) | |
Grisalho | 11,9 (7) | 8,5 (5) | |
Preto | 22,0 (13) | 20,3 (12) | |
Castanho | 55,9 (33) | 52,5 (31) | |
Efélides | 13,6 (8) | 1,7 (1) | 0,032 |
Lentigos solares | 55,9 (33) | 52,5 (31) | 0,854 |
Queimadura solar prévia | 62,1 (36) | 42,1 (24) | 0,032 |
Número de nevos melanocíticos | 0,447 | ||
<20 | 79,7 (47) | 88,1 (52) | |
20‐50 | 13,6 (8) | 8,5 (5) | |
> 50 | 6,8 (4) | 3,4 (2) | |
Nevos atípicos | 13,6 (8) | 6,8 (4) | 0,223 |
Queratoses atípicas | 22,0 (13) | 28,8 (17) | 0,398 |
A ausência de pigmentação (melanoma amelanótico) associou‐se a espessura> 1mm (17,5%; p <0,001). Não se observaram diferenças significativas relativamente à localização do melanoma, assimetria, bordo, mudança de cor e crescimento recente em função da espessura (tabela 4).
Associação entre espessura e variáveis clínicas em doentes com melanoma maligno
Variáveis | Espessura, % (n) | Valor p | |
---|---|---|---|
≤ 1 mm(n=59) | > 1 mm(n=60) | ||
Localização | 0,147 | ||
Cabeça e pescoço | 28,8 (17) | 26,7 (16) | |
Tronco | 39,0 (23) | 31,7 (19) | |
Membro superior (exceto mão) | 6,8 (4) | 5,0 (3) | |
Mão | 3,4 (2) | 3,3 (2) | |
Membro inferior (exceto pé) | 18,6 (11) | 13,3 (8) | |
Pé | 3,4 (2) | 20,0 (12) | |
Assimetria | 0,725 | ||
Simétrico | 11,5 (6) | 9,4 (5) | |
Assimétrico | 88,5 (46) | 90,6 (48) | |
Bordo | 0,810 | ||
Regular | 13,0 (7) | 14,5 (8) | |
Irregular | 87,0 (47) | 85,5 (47) | |
Coloração | <0,001 | ||
Não pigmentado | 0,0 (0) | 17,5 (10) | |
Pigmentado | 100,0 (56) | 82,5 (47) | |
Mudança de cor recente | 58,3 (28) | 59,6 (31) | 0,896 |
Crescimento recente | 74,5 (38) | 83,9 (47) | 0,229 |
A tabela 5 representa os resultados da regressão logística univariada e multivariada sobre fatores preditivos de uma espessura> 1mm em doentes com melanoma maligno. Na análise univariada, a presença de efélides, queimadura solar prévia e de rede/pseudo‐rede pigmentar atípica foram preditivos de espessura <1mm, mas a presença de padrão vascular atípico ou de linhas brancas brilhantes relacionou‐se com espessura> 1mm. O modelo de regressão multivariado permitiu explicar 49,7% da variância associada à espessura (R2=0,497) e identificou o padrão vascular atípico (risco relativo de 6,621; p <0,001) como fator preditivo independente de espessura> 1mm. Ao contrário, a rede/pseudo‐rede pigmentada atípica (risco relativo de 0,168; p=0,001) foi identificada como um fator preditivo de espessura <1mm.
Fatores preditores da espessura>1mm em doentes com melanoma maligno
Dimensão | Análise univariada | Análise multivariada | ||
---|---|---|---|---|
RR (95% IC) | Valor p | RR (95% IC) | Valor p | |
Idade ≥ 40 anos | 6,679 (0,779‐57,298) | 0,083 | NA/NC | |
Efélides | 0,110 (0,013‐0,909) | 0,041 | NA/NC | |
Queimadura solar prévia | 0,444 (0,211‐0,938) | 0,033 | 0,626 (0,244‐1,610) | 0,331 |
Rede/pseudo‐rede pigmentar atípica | 0,168 (0,068‐0,413) | <0,001 | 0,168 (0,058‐0,491) | 0,001 |
Padrão vascular atípico | 8,104 (3,488‐18,828) | <0,001 | 6,621 (2,462‐17,807) | <0,001 |
Linhas brancas brilhantes | 13,020 (1,623‐104,445) | 0,016 | 7,005 (0,682‐71,939) | 0,101 |
NA/NC, não aplicável ou calculável; RR, risco relativo; 95% IC, intervalo de confiança a 95%.
Das variáveis clínicas e epidemiológicas estudadas, apenas a presença de efélides e a história de queimadura solar prévia foram identificadas como fatores preditivos de melanomas finos, fatos não relatados consistentemente em estudos prévios.13 Este resultado poderá ser explicado pelo reconhecimento das efélides e de queimaduras solares como fatores de risco para desenvolvimento de neoplasias cutâneas e consequente adoção de medidas de prevenção secundária, como o recurso ao autoexame regular da pele.
Estudos prévios comprovaram a existência de uma associação entre a rede/pseudo‐rede pigmentar atípica e melanomas finos, bem como uma associação entre o padrão vascular atípico e linhas brancas brilhantes com melanomas de maior espessura.8,9 Contudo, ao contrário de outras séries, a presença de véu azul‐acinzentado e de estrias não mostrou relação com melanomas de espessura> 1mm.8–10
Após a regressão multivariada, apenas o padrão vascular atípico e a rede/pseudo‐rede pigmentada atípica se distinguiram respetivamente como fatores preditivos independentes de melanomas mais espessos que 1mm e de melanomas com 1mm ou menos de espessura. Essas associações sugerem que melanomas mais invasivos têm maior neovascularização, representada ao dermatoscópio por vasos atípicos, e que melanomas com espessura ≤ 1mm mantêm a junção dermoepidérmica intacta, já que a rede pigmentada atípica corresponde à proliferação melanocítica atípica juncional.14
Salientam‐se limitações como a falta de dados relativos a algumas das variáveis estudadas e a ausência de correlação ótima entre a análise dermatoscópica, feita num plano horizontal, e o exame anatomopatológico, realizado por meio de biópsia vertical. Para além disso, no futuro, será relevante realizar estudos de coorte propectivos para confirmação dos resultados obtidos.
ConclusõesA biópsia incisional acarreta o risco de subestimar a espessura, levando a um subestadiamento e a eventuais imprecisões na definição das margens apropriadas de excisão e na indicação da biópsia de linfonodo sentinela. A dermatoscopia é uma técnica potencialmente útil para a redução dos erros de subestadiamento, pois possibilita a escolha do local mais adequado para a realização da biópsia incisional – deve‐se evitar zonas onde exista apenas rede pigmentada atípica (relacionadas com espessuras tumorais mais baixas) e incidir de preferência em zonas onde se observem vasos atípicos (associadas a espessuras mais elevadas).
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresAna Rita Silva: Análise estatística; conceção e planeamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura.
Ricardo Vieira: Aprovação da versão final do manuscrito; conceção e planeamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; revisão crítica do manuscrito; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados.
Conflito de interessesNenhum.