A hanseníase é uma doença infecciosa crônica com potencial incapacitante pela afinidade do agente, Mycobacterium leprae, pelos nervos periféricos e pele. Dos 208.619 novos casos detectados mundialmente em 2018, 11.323 já apresentavam deformidades aparentes; 2.109 (18,6%) casos eram do Brasil, número que esteve abaixo apenas da Índia, com 3.666 casos novos com deformidades.1
A neuropatia na hanseníase pode ocorrer de maneira insidiosa, mais comumente na forma de mononeuropatia múltipla, com o acometimento simultâneo de dois ou mais nervos periféricos em regiões distintas do corpo; os nervos ulnar e tibial posterior são os mais envolvidos. Com frequência, o dano neural também pode ocorrer durante episódios agudos de reações imunológicas contra antígenos bacilares, que podem surgir no decorrer da doença ou mesmo após o tratamento poliquimioterápico, na forma de neurite com edema, obstrução vascular, isquemia e estrangulamento na passagem pelos canais osteofibrosos dos membros, levando à dor e ao déficit de função, principal causa das incapacidades físicas e estigma da doença.2,3
A base do tratamento da neurite é a prednisona, utilizada para o controle do processo inflamatório e da dor, evitando o dano neural permanente. A neurólise é a cirurgia para descompressão do nervo por meio de uma incisão do epineuro e abertura do canal osteofibroso para liberação do mesmo, no nível do cotovelo e/ou do punho.3 É realizada principalmente nos casos de abscesso de nervo, neurite não responsiva ao tratamento clínico por quatro semanas, episódios de neurites recorrentes ou subentrantes, neurites deficitárias crônicas com dor, e neurites em pacientes com comorbidades que contraindicam o uso de corticoides nas doses adequadas, e nos casos de contraindicação absoluta de corticoides.4
Com o objetivo de descrever a evolução clínica da função neural e da recorrência da neurite em pacientes com neurite hansênica submetidos à neurólise, apresentamos uma série de 22 casos de cirurgia do nervo ulnar, realizadas em 2015 e 2016 na Fundação de Dermatologia Tropical e Venereologia Alfredo da Matta, na cidade de Manaus (AM).
Imediatamente antes da neurólise e após a mesma (30, 90 dias e na data do retorno), foi realizada a avaliação neurológica simplificada segundo o Ministério da Saúde do Brasil.4 A avaliação da sensibilidade foi realizada com estesiômetro ou monofilamento de Semmes‐Weinstein, composto por um conjunto de seis fios de nylon de diferentes cores e espessuras que, pressionados contra a pele, correspondem a diferentes pesos (de 0,05g a 300g). Foram considerados os monofilamentos de 0,05g (verde) e 0,2g (azul) como sensibilidade normal, e acima destes, diminuída.5 Para a avaliação da força muscular foi examinado o músculo abdutor do quinto dedo e utilizada a escala do Medical Research Council, que gradua a força de 0 (ausência de movimento muscular) a 5 (movimento completo contra a gravidade com resistência máxima).4 Os níveis 4 (movimento completo contra a gravidade com resistência parcial) e 5 foram considerados normais.5
O tempo entre o primeiro episódio de neurite e a realização da neurólise foi em média 25,3 meses (Dp=63,3; mín.=1; máx.=303); em 11 (50,0%) pacientes o procedimento foi realizado em até seis meses, o que é relacionado com os melhores resultados por outros autores.5 Para fins de comparação, no presente estudo foi considerada a última avaliação neurológica, que variou de três a 168 meses, tendo 12 (54,5%) pacientes com mais de um ano de seguimento.
De 12 casos que já tinham sensibilidade alterada antes da cirurgia, sete (58,3%) apresentaram melhora e, de seis que tinham alteração da força muscular, cinco (83,3%) mantiveram o mesmo nível e apenas um (16,7%) piorou. Quinze (68,2%) pacientes não tiveram mais neurite no nervo operado, porém três destes ainda tiveram que usar prednisona por apresentarem reação hansênica e/ou neurite de outros nervos. Dois pacientes tiveram apenas um único episódio de neurite, que ocorreu três e quatro meses após a cirurgia. Outros cinco (18,2%) tiveram neurites subentrantes do nervo operado, com média de 52,6 meses (Dp=63; mín.=17; máx.=172) após a cirurgia, sem, necessariamente, evoluírem com perda da função (tabela 1).
Características dos casos de hanseníase submetidos à neurólise do nervo ulnar
N° ordem | Sexo | Idade no diagnóstico (anos) | Forma clínica | Tempo em meses entre | Sensibilidadea | Força muscularb | Tempo com recorrências (meses) | |||
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Neurite e neurólise | Neurólise e avaliação | Inicial | Final | Inicial | Final | |||||
1 | M | 31 | BL | 01 | 03 | 0,05 g | 0,05 g | 4 | 5 | – |
2 | M | 22 | BL | 02 | 20 | 0 | 10 g | 4 | 5 | 21 |
3 | M | 34 | LL | 02 | 05 | 0,05 g | 0,2 g | 5 | 5 | – |
4 | M | 8 | TT | 02 | 44 | 300 g | 10 g | 0 | 0 | – |
5 | M | 20 | BT | 02 | 08 | 300 g | 0 | 0 | 0 | – |
6 | M | 26 | BL | 02 | 18 | 0,05 g | 300 g | 5 | 4 | 03c |
7 | M | 13 | BT | 03 | 34 | 300 g | 300 g | 4 | 5 | – |
8 | M | 35 | LL | 04 | 14 | 0,2 g | 0,2 g | 5 | 5 | – |
9 | M | 39 | LL | 04 | 30 | 0 | 4 g | 3 | 3 | – |
10 | M | 49 | LL | 05 | 24 | 0,2 g | 0,2 g | 5 | 5 | – |
11 | M | 51 | BL | 6 | 03 | 300 g | 0 | 2 | 2 | – |
12 | M | 24 | LL | 09 | 26 | 300 g | 0,2 g | 5 | 5 | – |
13 | M | 24 | LL | 10 | 02 | 0,2 g | 0,2 g | 5 | 5 | – |
14 | M | 11 | BL | 12 | 21 | 0,05 g | 0,05 g | 5 | 5 | 21 |
15 | M | 36 | BL | 16 | 17 | 300 g | 10 g | 3 | 3 | 17 |
16 | M | 15 | LL | 17 | 04 | 0,05 g | 0,05 g | 5 | 5 | – |
17 | F | 57 | BT | 20 | 08 | 300 g | 0,2 g | 4 | 4 | – |
18 | M | 18 | BL | 20 | 168 | 300 g | 0 | 3 | 1 | 172 |
19 | M | 17 | LL | 31 | 10 | 0,05 g | 0,2 g | 5 | 5 | 32 |
20 | F | 12 | BT | 36 | 04 | 300 g | 4 g | 4 | 5 | 04c |
21 | M | 19 | BL | 49 | 135 | 0,05 g | 0,05 g | 5 | 5 | – |
22d | M | 26 | LL | 303 | 03 | 10 g | 10 g | 2 | 2 | – |
Monofilamento: 0,05g (verde) e 0,2g (azul)=sensibilidade normal; 2,0g (violeta)=diminuiçãoo da sensibilidade protetora, com discriminação de forma e temperatura diminuída; 4,0g (vermelho escuro)=sensibilidade protetora diminuída; 10,0g (laranja)=pode sentir pressão profunda e dor; 300,0g (vermelho magenta)=perda da sensação de pressão profunda, podendo sentir dor; e 0=não sente nenhum monofilamento ou ausência de sensibilidade à pressão ou dor.
Com esta série de casos, ressalta‐se a importância clínica dos resultados em situação de rotina, em que a maior contribuição da neurólise associada ao tratamento clínico da neurite hansênica foi a não recorrência ou cronificação do quadro, evitando a corticoterapia prolongada e suas consequências, além da possível evolução para incapacidades físicas, inclusive com ganho da função sensitiva para a maioria dos casos apresentados. Faz‐se necessário, contudo, a realização de estudos com metodologia apropriada para avaliar a eficácia da neurólise ou seus benefícios em comparação ao tratamento clínico isolado, mesmo diante das publicações existentes ao longo de décadas.5
Suporte financeiroFundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – bolsa de iniciação científica.
Contribuição dos autoresJuliana Barroso‐Freitas: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura.
Pedro Arthur da Rocha Ribas: Revisão crítica da literatura; obtenção, análise e interpretação dos dados.
Paula Frassinetti Bessa Rebello: Concepção e planejamento do estudo; revisão crítica da literatura; análise dos dados; revisão crítica do manuscrito.
Silmara Navarro‐Pennini: Concepção e planejamento do estudo; elaboração e redação do manuscrito; revisão crítica da literatura; análise dos dados.
Conflito de interessesNenhum.
Agradecimento a todos os profissionais que atuam no setor de prevenção de incapacidades físicas da Fundação de Dermatologia Tropical e Venereologia Alfredo da Matta, em nome da chefe do serviço, fisioterapeuta Isabelle Nóbrega Oliveira.
Como citar este artigo: Barroso‐Freitas J, Ribas PAR, Rebello PFB, Navarro‐Pennini S. Clinical evolution of neural function in a series of leprosy neuropathy cases after ulnar neurolysis. An Bras Dermatol. 2021;96:500–2.
Trabalho realizado na Fundação de Dermatologia Tropical e Venereologia Alfredo da Matta Manaus, AM, Brasil.
Projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição (CEP‐FUAM) sob o número CAE 03242218.5.0000.0002.