A sífilis, infecção causada por Treponema pallidum, é conhecida por sua transmissão predominantemente por contato sexual e por afetar vários órgãos causando lesões cutâneas, mucosas e sistêmicas. Apesar de ser doença secular, apresenta‐se ainda hoje como grande desafio à saúde pública, uma vez que a contabilização de casos permanece crescente após anos de alertas da comunidade científica. Reconhecer as manifestações clínicas da sífilis é fundamental para a elaboração da hipótese clínica e confirmação diagnóstica com os exames complementares. Entretanto, o reconhecimento das lesões cutâneas nem sempre é simples, dada a pluralidade de manifestações clínicas que se assemelham a outras doenças. Este estudo de revisão apresenta um panorama geral da enfermidade, contendo dados epidemiológicos atuais, representação das diversas manifestações clínicas, descrição dos métodos diagnósticos pertinentes para a confirmação laboratorial e abordagens terapêuticas adequadas para cada forma clínica.
Desde que foi descrita, a sífilis tem sido considerada uma doença estigmatizante. Cada país cuja população era afetada culpava as nações vizinhas, ou as consideradas inimigas, como responsáveis pela disseminação da doença. Desse modo, a sífilis já foi chamada de mal francês ou gálico, mal napolitano, mal polaco e mal turco. No século XVI, o termo “lues venera” (peste venérea) foi utilizado pelo médico francês Jean Fernelius. Já o termo “sífilis” foi cunhado em 1530 pelo poeta e médico italiano Girolamo Fracastoro, em sua obra “Syphilis, sive Morbus Gallicus”, na qual o autor apresenta um personagem chamado Syphilus, um pastor de ovelhas que, ressentido pela falta de chuvas, culpa o deus Apolo pela seca que assola seu rebanho e aflige seu povo. Como punição por sua insolência, Apolo o amaldiçoa com uma doença dolorosa e desfigurante que acaba se espalhando para toda a população, o mal de Syphilus.1,2
A sífilis é doença infectocontagiosa crônica causada por Treponema pallidum, transmitida predominantemente por via sexual e que pode apresentar manifestações cutâneas e sistêmicas. A transmissão congênita ocorre por via transplacentária ou hematogênica e, com menor frequência, a transmissão pode ainda ocorrer por meio de transfusões sanguíneas, compartilhamento de agulhas ou inoculação acidental. O ser humano é o único reservatório conhecido.3
A sífilis é caracterizada por longos períodos de latência e pela capacidade de atingir múltiplos órgãos, ocasionando lesões cutâneas, mucosas, cardiovasculares e neurológicas. Na maioria dos casos, a doença tem início com lesão ulcerosa na região anogenital. Como em todas as doenças de transmissão sexual, essa ulceração é muito importante na transmissão dos vírus da imunodeficiência adquirida (HIV) e das hepatites B e C. É ainda um agravante o fato de as úlceras genitais sifilíticas serem densamente infiltradas com linfócitos (as principais células‐alvo para a infecção pelo HIV) e, portanto, fornecem importante porta de entrada para a aquisição desse vírus.3
Quando acomete gestantes, se não tratada, a sífilis pode resultar em aborto, prematuridade, morte neonatal ou manifestações tardias do concepto, como surdez, déficit do desenvolvimento e deformidades ósseas, caracterizando a sífilis congênita.
Existem três principais teorias para explicar a origem da sífilis. A primeira, denominada “teoria pré‐colombiana”, afirma que a “pinta” foi a primeira treponematose a surgir na região afro‐asiática, aproximadamente no ano 15.000 a.C., tendo um animal como reservatório. Mutações no treponema teriam originado a “bouba”, em 10.000 a.C., a “sífilis endêmica”, em 7.000 a.C., e a “sífilis sexualmente transmissível”, em 3.000 a.C., no sudoeste asiático, de onde teria se espalhado para a Europa e para o resto do mundo.1,2
A “teoria unitária”, considerada por alguns autores como variação da hipótese pré‐colombiana, defende que as treponematoses sempre tiveram distribuição global. Segundo essa teoria, tanto a sífilis quanto as treponematoses não sexualmente transmissíveis são variantes geográficas da mesma infecção original. As diferentes manifestações clínicas seriam justificadas por respostas adaptativas do treponema ao ambiente, às diferenças culturais e à miscigenação dos povos.1,2
Por fim, a “teoria colombiana”, hipótese muito popular e aceita por muitos autores, afirma que a doença teria surgido nas Américas e sido levada à Europa pelos navegadores da frota de Cristóvão Colombo, em 1493. Essa teoria é sustentada principalmente pelo encontro de lesões esqueléticas características do diagnóstico de sífilis em múltiplos fósseis de milhares de anos encontrados em várias regiões das Américas. Na Europa, os achados compatíveis com a presença de alterações sifilíticas em fósseis humanos são controversos e inconclusivos.1,2
EpidemiologiaNo Brasil, a sífilis adquirida acomete especialmente adolescentes e adultos jovens entre 15 e 25 anos, podendo, porém, ocorrer em qualquer faixa etária. A doença não tem predileção racial, de gênero ou socioeconômica; está principalmente associada a comportamento sexual de risco. Não confere imunidade, podendo ocorrer reinfecção e sobreinfecção.3
De acordo com o boletim de doenças sexualmente transmissíveis do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos, desde 2001 os casos de sífilis primária e secundária têm aumentado. Em 2022, 59.016 casos de sífilis primária e secundária foram relatados nos Estados Unidos (17,7 casos por 100.000 pessoas). De 2021 a 2022, a taxa nacional de sífilis primária e secundária entre mulheres aumentou 19,2%, com incrementos observados em 36 estados e no distrito de Columbia. O aumento do número de casos entre mulheres é simultâneo ao observado entre homens que fazem sexo apenas com mulheres, refletindo epidemia de sífilis heterossexual em expansão nos Estados Unidos. Deve‐se ressaltar ainda que homens que fazem sexo com homens (HSH) correspondem a quase metade (45,1%) de todos os casos de sífilis primária e secundária em homens em 2022.4
No Brasil, a sífilis adquirida passou a ter notificação compulsória em todo o território nacional em 2010. No período de 2012 a junho de 2023, foram notificados no Sinan 1.340.090 casos de sífilis adquirida. Do total do número de casos, 50,0% ocorreram na região Sudeste, 22,3% no Sul, 14,2% no Nordeste, 7,2% no Centro‐Oeste e 6,3% no Norte.3
Em 2022 foram notificados 213.129 casos no Brasil, dos quais 101.909 (47,8%) casos foram registrados na região Sudeste, 46.291 (21,7%) na região Sul, 32.084 (15,0%) na região Nordeste, 16.327 (7,7%) na região Norte e 16.518 (7,8%) na região Centro‐Oeste.3
Entre os anos de 2012 e 2018, a taxa de detecção de sífilis adquirida apresentou crescimento médio anual de 35,4%. No entanto, em 2019 essa taxa manteve‐se estável, e declinou 23,4% no ano de 2020, em decorrência da pandemia de COVID‐2019. A partir de 2021 a taxa de detecção aumentou novamente, em patamar superior ao período pré‐pandemia em todo o país, com aumento de 23,0% no último ano (fig. 1). Entre 2021 e 2022, o crescimento da taxa foi 26,6% (de 76,3 para 96,6 casos por 100.000 hab.) na região Centro‐Oeste; 24,9% (de 90,4 para 112,9 casos por 100.000 hab.) no Sudeste; 24,1% (de 121,8 para 151,2 casos por 100.000 hab.) no Sul; 19,1% (de 72,5 para 86,3 casos por 100.000 hab.) no Norte e 15,9% (de 47,8 para 55,4 casos por 100.000 hab.) na região Nordeste.3
Em 2022, 61,3% do total de casos ocorreram em homens, e as taxas de detecção chegaram a 234,5 e 142,5 casos por 10.000 habitantes nas faixas etárias de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos, respectivamente. O número de casos de sífilis em adolescentes do sexo feminino foi maior do que em indivíduos do sexo masculino, representando relação M:F de 0,7 (sete homens com sífilis para cada 10 mulheres com sífilis) em 2022. Por outro lado, naquele mesmo ano, nas faixas etárias de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos a relação M:F foi 1,8 (18 homens com sífilis para cada 10 mulheres) e 2,0 (20 homens para cada 10 mulheres com sífilis), respectivamente.3
Nos últimos 20 anos houve aumento substancial do número de casos de sífilis no mundo. Esse aumento pode ser atribuído a diversos fatores, como mudanças no comportamento sexual e diminuição do receio em infectar‐se pelo HIV. Nesse período, alguns estudos identificaram aumento da incidência de sífilis e outras IST em indivíduos em uso de profilaxia pré‐exposição ao HIV (PREP).5,6
Nos pacientes vivendo com HIV (PVHIV), a prevalência de sífilis é significantemente maior do que na população geral. Em estudo chinês, a taxa de coinfecção HIV/sífilis foi de 20%. Outros estudos realizados na Turquia e Brasil mostraram taxas de 23% e 11%, respectivamente. Na análise de subgrupos, os três estudos mostraram prevalência significantemente aumentada de coinfecção no grupo de HSH quando comparado ao grupo de heterossexuais. Nos três estudos, a maioria dos pacientes apresentava sífilis latente.7–9
EtiopatogeniaTreponema pallidum, o agente etiológico da sífilis, é bactéria gram‐negativa do grupo das espiroquetas, anaeróbia facultativa e catalase negativa. O treponema penetra no hospedeiro por meio de pequenas fissuras na pele ou mucosa produzidas pela atividade sexual. Uma vez dentro do epitélio, multiplica‐se localmente e invade os vasos linfáticos e a corrente sanguínea. Nesse processo de invasão, essa bactéria extracelular evita o reconhecimento e a adequação das respostas imunes inatas e adaptativas do hospedeiro em virtude da baixa expressão de proteínas na membrana plasmática, bem como ausência de lipopolissacarídeos (glicolipídeos altamente pró‐inflamatórios encontrados em bactérias gram‐negativas) e expressão de lipoproteínas capazes de ativar macrófagos e células dendríticas.10,11
Embora a escassez de padrões moleculares associados a patógenos (PAMPs, moléculas reconhecidas pelo sistema imune inato como sinal de invasão por grupo de agentes patogênicos) na membrana externa do T. pallidum permita que a bactéria se replique localmente e se dissemine, a detecção de patógenos pelo hospedeiro é eventualmente desencadeada. O treponema é captado por células dendríticas que migram para os linfonodos e apresentam antígenos treponêmicos aos linfócitos B e T. São produzidos anticorpos que favorecem a degradação das espiroquetas pelos fagócitos, liberando então lipopeptídeos (cardiolipinas) e outros PAMPs que ativam células T, finalizando a cascata de produção de citocinas como IFN‐γ, fator de necrose tumoral (TNF) e IL‐6.10,11
Aspectos clínicosUm antigo ditado em latim, “Omnis syphiliticus mendax (est)” (“Todo sifilítico é mentiroso”), é relevante mesmo nos dias atuais: não se pode ter certeza de que a história do caso relatada pelo paciente com sífilis esteja de acordo com os fatos, principalmente no que se refere à história sexual.12–14 Assim, reconhecer as manifestações clínicas é fundamental para a elaboração da hipótese clínica e a confirmação do diagnóstico com os exames complementares. Entretanto, o reconhecimento das lesões de sífilis nem sempre é simples, uma vez que a doença é considerada pela maioria dos estudiosos como a grande imitadora, dada a pluralidade de manifestações clínicas que se assemelham a outras doenças.15,16
A associação entre sífilis e HIV é bem estabelecida, com a sífilis aumentando o risco de transmissão do HIV. A infecção pelo HIV, por sua vez, pode alterar a história natural da sífilis, dificultando o diagnóstico da doença causada por T. pallidum.17,18 No decorrer das descrições das formas clínicas, serão destacadas as particularidades do paciente que apresenta a coinfecção dessas IST.
A sífilis pode ser classificada de diversas maneiras, seja pelo tempo de evolução da doença (recente, até 1 ano da infecção, e tardia, após 1 ano) ou em estágios de evolução (primária, secundária, latente e terciária).19,20 Para facilitar a caracterização dos aspectos clínicos, optou‐se pela classificação pelos estágios de evolução (fig. 2).
A lesão clássica da sífilis primária é cancro indolor, que identifica o local de inoculação da bactéria no organismo. Ocorre entre três e 90 dias após a inoculação (média de 21 dias) e evolui a partir de mácula para pápula e nódulo, o qual perde seu epitélio de cobertura para então se tornar erosão. A perda de tecido mais profundo produz uma úlcera, tipicamente de 0,5 a 3cm de diâmetro. A superfície central do cancro é limpa, lisa e mucoide e produz exsudato seroso discreto. A borda é normalmente plana, bem demarcada. Os cancros são endurecidos ao toque em virtude do edema circundante e a infiltração linfocítica, dando o nome de “cancro duro” à lesão. A lesão é geralmente solitária, e a ocorrência de duas ou mais lesões pode estar relacionada à coinfecção pelo vírus do HIV (fig. 3). Importante ressaltar que não raramente o protosifiloma pode passar desapercebido pelo paciente em virtude da característica indolor da lesão.18,20‐24
Quando o cancro é localizado em região com excesso de pele, como o prepúcio, é evidenciada, na inspeção dinâmica, a presença do “sinal da bandeira” ou “sinal do botão”, em inglês denominado “dory flop sign”, que representa a movimentação em bloco dessa lesão infiltrada e sólida.22,24,25
O cancro redux é forma incomum de sífilis recorrente, na qual ocorre reaparição de uma lesão primária da sífilis, geralmente um cancro duro, no local da infecção original, após a pessoa ter sido tratada inadequadamente ou não ter completado o tratamento da doença. Essa recorrência ocorre pela persistência da bactéria T. pallidum no organismo. O cancro redux é um sinal de que a infecção não foi totalmente erradicada e que o tratamento deve ser reavaliado para garantir a eliminação completa da doença. É uma manifestação menos comum atualmente, visto que os tratamentos com antibióticos adequados geralmente são eficazes. Não deve ser confundido com o pseudocancro redux, manifestação clínica da sífilis terciária que apresenta lesão de goma no local do cancro original.22,26
A infecção primária na glande pode se apresentar com múltiplas erosões de origem treponematosa, caracterizada por elevações achatadas e esbranquiçadas que são facilmente confundidas com etiologia fúngica ou irritativa. Essa apresentação atípica recebe o nome de seu primeiro descritor, “balanite sifilítica de Follmann”, e pode se desenvolver antes ou depois do aparecimento do cancro primário.15,21,24,27‐29
Outra manifestação que tem sido notada nessa fase é a presença de lesões “em cordão”, indolores, endurecidas à palpação, localizadas principalmente no sulco balanoprepucial (fig. 3).15
A linfoadenopatia inguinal presente nessa fase foi destacada por pesquisadores seculares. Ela segue a cadeia de drenagem linfática, preferencialmente unilateral e inflamatória, podendo ser bilateral: lesões no pênis e lábios vaginais tendem a apresentar linfadenopatia inguinal; lesões anais, linfadenopatia em cavidade pélvica e abdominal; lesões orais e labiais, linfadenopatia submandibular e cervical. A presença do aumento linfonodal regional é tão frequente que Fournier afirmou que essa manifestação “segue o cancro como a sombra segue o corpo”, e também é reconhecido como “linfonodo prefeito” (fig. 4).21,24
A coinfecção de T. pallidum e Haemophylus ducreyi, na mesma lesão ulcerada, configura o cancro misto de Rollet (cancro duro associado ao cancro mole). Essa situação é pouco descrita na literatura; talvez não pela raridade do quadro, mas pela abordagem sindrômica das úlceras genitais, com baixa frequência de investigação microbiana de ambos os agentes na lesão.30
A forma primária da sífilis pode durar entre duas a oito semanas e tende a desaparecer de maneira espontânea, independentemente de tratamento, geralmente sem deixar cicatriz.21,22,24,31 O cancro chega a ser identificado em cerca de 15% dos pacientes no início do estágio secundário, e casos que apresentam essa concomitância de fase primária e secundária devem ser investigados por imunossupressão como coinfecção pelo vírus do HIV.20,21,32
Sífilis secundáriaNos indivíduos não tratados, os treponemas proliferam no cancro e migram por via linfática para a corrente sanguínea, a partir da qual se disseminam por todo o corpo. Os sinais e sintomas surgem em média entre seis semanas e seis meses após a infecção e duram em média entre quatro e 12 semanas.19,22,31
Raramente as manifestações primárias podem estar ausentes no curso da infecção; os primeiros sinais da doença são representados pelas lesões da fase secundária. Essa situação é conhecida como “sífilis decapitada”, pela ausência da fase primária no curso da doença, ou “sífilis d’emblée”, palavra francesa que remete ao imediatismo da infecção. Ocorre quando o treponema é inoculado diretamente na corrente sanguínea, como em transfusões sanguíneas não testadas ou por compartilhamento de agulhas.33
Assim, enquanto a sífilis primária representa o local de inoculação da bactéria no epitélio, a secundária corresponde à dispersão do parasita pelo organismo do hospedeiro. As manifestações clínicas mais frequentes são as lesões mucocutâneas (90%‐97%), com ou sem sinais e sintomas sistêmicos, como linfadenopatia generalizada (50%‐85%), mal‐estar (13%‐20%), dor de garganta (15%‐30%), dores no corpo (6%‐8%) e febres baixas (5%‐8%).22,26,31,34 O acometimento de órgãos internos como pulmões, estômago e intestino é descrito, causando uma variedade de sintomatologias e apresentações clínicas.35,36
As lesões cutâneo‐mucosas da sífilis secundária são denominadas sifílides, e o primeiro sinal cutâneo desse estágio é uma erupção cutânea macular (“roséola sifilítica”) efêmera, com duração de poucos dias, de coloração eritematosa pálida (“eritema cúprico” ou “eritema triste”) e predileção pelo tronco e membros; em indivíduos melanodérmicos, a fase de roséola pode passar desapercebida, pela dificuldade de percepção de eritemas leves em peles escuras (fig. 5).22,26,31 Máculas hipocrômicas (leucodermias) residuais podem seguir a regressão do estágio de roséola, mais comum em mulheres de cabelos escuros. Por afetar caracteristicamente o pescoço e os ombros, é reconhecido como “colar de Vênus” e pode ser diagnosticado erroneamente como vitiligo.26,34
O estágio macular inicial evolui a uma erupção papular simétrica incluindo palmas e plantas, geralmente escamosas, com descamação periférica denominada “colarete de Biett” (fig. 6), podendo também ser lisos, foliculares ou, raramente, pustulosos. Nessa fase, o eritema se mostra mais intenso e evidente (fig. 5). Vesículas geralmente não ocorrem, embora lesões vesicopustulares sejam vistas em raras ocasiões e sejam comuns nas palmas das mãos ou plantas dos pés (fig. 7).22,26,31 Apesar da extensão das lesões, o prurido não é sintoma característico da doença; entretanto, estudos recentes indicam que essas lesões eruptivas podem estar associadas a esse sintoma, apresentando intensa proliferação eosinofílico no exame histopatológico.37,38
Com a persistência das lesões cutâneas, ocorre regressão na área corpórea acometida, localizando‐se em segmentos do tegumento, ao passo que as lesões elementares aumentam para nódulos e placas, podendo adquirir formatos corimbiformes (fig. 8).32,39,40 Nas regiões de dobras surgem lesões também nodulares e tumorais, denominadas condilomas planos (fig. 9), extremamente infectivas e que podem ser confundidas com condilomas acuminados causados pelo papilomavírus humano (HPV).31,34,41,42 Em pacientes melanodérmicos, as lesões faciais podem adquirir configurações anulares e circinadas, denominada sifílide elegante ou bonita (fig. 10).26
As lesões mucosas também são comuns e características da sífilis secundária, ocorrendo em 30% a 40% dos pacientes. Manchas mucosas são erosões exsudativas, ovais, bem demarcadas e com bordas eritematosas, mais comumente se manifestando na língua e nos lábios; assim como o condiloma plano, essas lesões são altamente infectivas. Ocasionalmente, as erosões podem coalescer e assumir contorno linear, então denominadas “úlceras de trilha de lesma”. Nas comissuras orais, as lesões podem aparecer como pápulas com erosões transversas, chamadas de “pápulas divididas” (fig. 11).22,34,43,44
Durante o estágio secundário, além do acometimento da pele e mucosas pode ocorrer também alterações dos anexos cutâneos: os pelos (cabelos) e unhas. A queda de cabelo é também chamada de alopecia sifilítica (AS). Essa alopecia é classificada em sintomática, na qual ocorrem lesões no couro cabeludo associadas à queda capilar, e essencial, na qual ocorre apenas a queda dos pelos. Essa última é subdividida em três padrões: alopecia desigual, alopecia difusa e alopecia mista. A AS essencial tipo desigual é a mais comum, e é caracterizada pela presença de múltiplas placas de alopecia não cicatricial, sem inflamação ou descamação; é também chamada de “em roído de traça”, “moth‐eaten” ou “em clareira” (fig. 12). Ela ocorre principalmente na região parieto‐occipital, mas também pode surgir na barba, ciíios, axilas, púbis, tronco e pernas. A AS essencial tipo difusa é causada por perda capilar tipo eflúvio telógeno (fig. 13), enquanto a AS essencial tipo mista é caracterizada por pequenas placas irregulares que se desenvolvem juntamente à alopecia difusa.45,46 Além dessas formas clínicas, alguns autores descrevem um quarto padrão da AS essencial: a tipo alopecia areata símile (fig. 13).22
As alterações do aparelho ungueal são raras. As alterações da lâmina ungueal decorrem do envolvimento da matriz, apresentando fragilidade, divisão, fissura, corrosão, onicólise, linhas de Beau, onicomadese (fig. 14) e até perda da unha. O surgimento de processo inflamatório peri e/ou subungueal é representado principalmente pela paroníquia sifilítica, com eritema e edema nos tecidos periungueais.22,47
A sífilis maligna, ou sífilis nódulo‐ulcerativa, é tipicamente caracterizada pela presença de úlceras assimétricas ou placas necróticas redondas com crostas lamelares ou rupioides localizadas no couro cabeludo, rosto, tronco e extremidades. Podem ocorrer úlceras orais com sinais e sintomas sistêmicos; febre, cefaleia e linfadenopatia estão geralmente presentes. É mais frequente em pacientes com infecção por HIV e baixa contagem de linfócitos T CD4+, desnutridos, HSH, com sífilis prévia, diabetes mellitus, tuberculose e abuso de álcool.14,18,20,22
Além das manifestações cutâneas causadas diretamente pela infecção de T. pallidum, há relatos de reações cutâneas secundárias à bactéria, considerados quadros reacionais, mais comum durante o secundarismo sifilítico. Os casos descritos são mais frequentes nos pacientes com coinfecção pelo vírus do HIV, e variam de manifestações de síndrome de Sweet a eritema multiforme.16,48,49 São diagnosticados com a associação do quadro clínico à sorologia positiva para sífilis e exame histopatológico da lesão compatível com o aspecto reacional, sem evidência da bactéria pela reação de imuno‐histoquímica. Diferentemente do quadro de Jarisch‐Herxheimer, no qual ocorre exacerbação das lesões cutâneas após a instituição do tratamento, esses quadros reacionais surgem antes e melhoram após o tratamento.
As lesões de secundarismo tendem a regredir espontaneamente após quatro a 12 semanas. Em sua maioria, as lesões não deixam cicatrizes, porém pode ocorrer lesões de anetodermia, relatadas mais comumente em pacientes com sorologia reagente para HIV.16,39
Neurossífilis e sífilis ocularA neurossífilis resulta da invasão treponêmica no sistema nervoso central (SNC), com número crescente de casos descritos em pacientes imunocompetentes e heterossexuais.13 A invasão das meninges pelo treponema é precoce, de 12 a 18 meses após a infecço, mas desaparece em 70% dos casos sem tratamento. Quando a infecção persiste, o que ocorre durante qualquer estágio da infecção, surge o quadro de neurossífilis, que pode ser sintomática ou assintomática.26
Na neurossífilis assintomática, o paciente não apresenta manifestações clínicas, mas há evidência de infecção do SNC na análise do líquor (VDRL reagente, proteína ou contagem de leucócitos elevados).22
Na neurossífilis sintomática, o quadro clínico é geralmente inespecífico e pode se desenvolver a qualquer momento durante a história natural da doença. Em pacientes com coinfecção com o vírus HIV, geralmente ocorre curso mais fulminante, enquanto em indivíduos imunocompetentes a doença é mais insidiosa, com sintomas inespecíficos.13,22
Os primeiros sintomas mais comuns de neurossífilis são sinais meníngeos leves, como cefaleia e náuseas. Podem ocorrer paralisias de nervos cranianos, com perda auditiva unilateral ou bilateral, com ou sem zumbido e nistagmo. A meningite pode causar febre, meningismo e fotofobia. Na sífilis meningovascular, a arterite causa infartos no cérebro ou na medula espinal. A pesquisa de neurossífilis recente deve ocorrer em portadores de sífilis com sinais neurológicos, oculares, imunossuprimidos ou que não reduzem os níveis e VDRL após tratamento.
A neurossífilis tardia sintomática, rara na era dos antibióticos, causa mais comumente paresia geral (também chamada de paresia geral do louco ou demência paralítica), que pode se manifestar com demência, convulsões e outras manifestações psiquiátricas. Pode ocorrer ainda tabes dorsalis, que pode se manifestar como dores fulminantes, incontinência urinária e disfunção erétil, ataxia, pupila de Argyll‐Robinson (reagem à acomodação/focagem, mas não à luz), perda de reflexos e sensação vibratória prejudicada.22 Em revisão de 137 artigos, relatando 286 pacientes com neurossífilis, apenas 10% apresentavam coinfecção com HIV. As apresentações clínicas mais relevantes foram paresia geral (49% dos casos), manifestadas por deficiência cognitiva e alterações psiquiátricas, seguido de meningite sifilítica (22%), sífilis meningovascular (11,5%), tabes dorsalis (11,5%), gomas parenquimatosas (3,5%) e epilepsia (2%).13
A sífilis ocular é considerada um tipo de neurossífilis. Enquanto a maioria dos quadros de meningite sifilítica é acompanhada do acometimento ocular, a sífilis ocular nem sempre é acompanhada de meningite sifilítica.13,50 Desse modo, a suspeita de sífilis ocular deve ser incluída em qualquer caso de inflamação ocular inexplicada. A doença pode ocorrer até seis semanas após a transmissão e ser a única característica de apresentação da sífilis sistêmica. Os achados mais comuns são panuveíte e uveíte posterior, mas o acometimento ocular pode se manifestar de várias maneiras, acometendo tanto o segmento anterior do olho (conjuntiva, córnea e esclera) quanto o segmento posterior (coroide e retina). Essas manifestações raramente ocorrem no estágio primário, exceto como cancros duros localizados na pálpebra e conjuntiva. No início da sífilis secundária podem ocorrer ceratite, nódulos da íris, iridociclite, episclerite e esclerite, e mais tarde, no estágio secundário, corioretinite e vitrite. No entanto, o comprometimento ocular é ainda mais frequente nos estágios tardio, latente e terciário da sífilis.50,51
Sífilis latenteA sífilis latente ocorre quando os testes sorológicos estão positivos, porém não há evidência clínica de infecção. O período de até um ano após a contaminação é classificado como sífilis latente precoce, e a partir dessa data se inicia a sífilis latente tardia.51
O diagnóstico é feito, em geral, com base em situações nas quais são solicitados exames ao paciente sem sintomas clínicos, como parceiros sexuais ou contactantes de doente diagnosticado com sífilis, exames de rotina ou de triagem.
Com base nos estudos que acompanharam a evolução natural da sífilis, 1/3 dos pacientes que tiveram regressão das lesões de secundarismo obtém a cura clínica e sorológica, 1/3 evoluirá sem sintomatologia, mas mantendo as provas sorológicas não treponêmicas positivas, e o último terço terá evolução da doença à forma de sífilis terciária, anos a décadas após a infecção.52,53
Sífilis terciáriaA sífilis terciária é rara, podendo se manifestar com alterações mucocutâneas, cardíacas, oftalmológicas, neurológicas, esqueléticas ou gástricas.54‐57 A incidência dessa fase da doença diminuiu drasticamente com o uso da penicilina no tratamento das fases iniciais.58
A pele é o órgão mais acometido. A sífilis terciária cutânea é classificada em nodular e gomatosa; na primeira há acometimento dermoepidérmico, e na segunda, comprometimento hipodérmico.54,57 A forma nodular é geralmente assimétrica, de aspecto crônico, indolor e de crescimento lentamente progressivo. Os nódulos localizam‐se geralmente na face, áreas interescapulares e extremidades. Essas lesões podem permanecer isoladas, coalescer formando placas ou tumores, distribuírem‐se em padrão arciforme ou ulcerarem.54,58‐61 A forma gomatosa apresenta‐se como nódulos subcutâneos firmes e indolores, geralmente solitários, que posteriormente desenvolvem ulcerações e drenam materiais sólidos necróticos. São lesões destrutivas que podem invadir profundamente o tecido e o osso, cicatrizando com cicatrizes profundamente retraídas. Pelo acometimento não raro do sistema cardiovascular, em especial a aorta ascendente, recomenda‐se investigação cardíaca adequada.13,22,54,58,62,63
Sífilis no paciente vivendo com HIVSabe‐se que a sífilis pode aumentar o risco de aquisição e transmissão do HIV, em duas a nove vezes, principalmente em decorrência das úlceras genitais. Em contrapartida, a infecção pelo HIV e a terapia antirretroviral (TARV) podem, além de facilitar a infecção pela diminuição da resposta imune mediada por células T, alterar a história natural e a apresentação clínica da sífilis.64,65
Em pacientes vivendo com HIV, a sífilis pode apresentar manifestações clínicas concomitantes de dois estágios clínicos diferentes, além de haver maior predisposição à formação de lesões atípicas, maiores e mais profundas, podendo ser encontrados múltiplos cancros primários, maior número de lesões ulceradas e quadros de sífilis maligna precoce no secundarismo, manifestações sistêmicas como uveíte, aortite, encefalite, artrite, acometimento gástrico e hepático. É alto o índice de acometimento neurológico, e esse acometimento muitas vezes é precoce e assintomático.66‐68
DiagnósticoO diagnóstico da sífilis é clínico‐laboratorial, e pode ser confirmado por vários métodos, como a pesquisa direta do treponema e pelas reações sorológicas (testes imunológicos), essas últimas as mais utilizadas na rotina laboratorial para auxílio ao diagnóstico. A pesquisa direta do treponema pode ser realizada pela microscopia de campo escuro (sensibilidade de 74% a 86%), imunofluorescência direta, testes rápidos, exame de material corado e histopatológico de biopsias teciduais. Esses exames são denominados exames diretos e são extremamente importantes para a confirmação do diagnóstico da sífilis.
Os exames diretos podem ser realizados nos casos sintomáticos de sífilis, mas na maioria dos casos são realizados na investigação de quadros com lesões cutâneas inespecíficas. A pesquisa de treponema em campo escuro, exame de material corado e histopatológico de biopsias teciduais são importantes para a confirmação do diagnóstico das fases sintomáticas da doença. No entanto, esses exames nem sempre estão disponíveis na maioria dos serviços de saúde. Os testes imunológicos podem ser utilizados tanto na fase sintomática quanto na assintomática (latência). Os testes imunológicos mais utilizados na prática clínica são os treponêmicos e não treponêmicos.
De acordo com o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Atenção Integral às Pessoas com Infecções Sexualmente Transmissíveis, do Ministério da Saúde do Brasil, indivíduos assintomáticos com teste não treponêmico reagente com qualquer titulação e teste treponêmico reagente, sem registro de tratamento prévio, deve ser considerado portador de sífilis adquirida. Essa é uma recomendação operacional, uma vez que testes falso‐reagentes podem ocorrer, tratamentos antimicrobianos para outras doenças podem também curar a sífilis, além do fato de poder haver resolução espontânea da treponematose não tratada. Da mesma maneira, indivíduos sintomáticos para sífilis, com pelo menos um teste reagente, treponêmico ou não, também são considerados casos de sífilis adquirida.19
Recomenda‐se, sempre que possível, iniciar a investigação da doença por um teste treponêmico, preferencialmente o teste rápido (TR), e associar, na sequência, teste não treponêmico para aumentar o valor preditivo positivo do teste inicial. Deve‐se ressaltar que os testes rápidos não estão presentes em todos os centros de saúde do país.
Testes imunológicosTestes treponêmicosOs testes treponêmicos detectam anticorpos específicos, produzidos durante a resposta imune inicial contra antígenos de T. pallidum. Desse modo, são os primeiros a positivar e permanecem positivos, na maioria dos casos, pelo resto da vida, mesmo após o tratamento específico. Indivíduos já tratados, mas que apresentem quadro clínico epidemiológico sugestivo de sífilis, devem ser submetidos a teste não treponêmico para eventual novo tratamento.
Os testes de hemaglutinação, e aglutinação passiva (TPHA), o teste da imunofluorescência indireta (fluorescent treponemal antibody – absorption test ‐ FTA‐Abs), quimioluminescência, ensaio imunoenzimático indireto e TR são testes treponêmicos. Os TR utilizam principalmente a metodologia de imunocromatografia de fluxo lateral ou de plataforma de duplo percurso (DPP) e, de acordo com o Ministério da Saúde do Brasil, encontram‐se disponíveis em todas as unidades de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS).
Testes não treponêmicosOs testes não treponêmicos tornam‐se positivos após o reconhecimento imune do hospedeiro contra o treponema (ação dos anticorpos antitreponêmicos), quando ocorre a degradação da bactéria e liberação de componentes cardiolipínicos de sua estrutura celular. Assim, esses testes detectam anticorpos não específicos anticardiolipina para antígenos do T. pallidum e são importantes tanto para o diagnóstico quanto para o monitoramento da resposta ao tratamento. O Venereal Disease Research Laboratory (VDRL), RPR (do inglês, Rapid Test Reagin) e TRUST (Toluidine Red Unheated Serum Test) são exemplos desses testes.
Sempre que um teste não treponêmico é realizado, é importante que a amostra pura e diluída seja realizada, face ao fenômeno prozona.69 No caso de reatividade do teste, a amostra deve ser diluída em fator dois de diluição, até a última diluição em que não haja mais reatividade no teste. O resultado dos testes reagentes deve ser expresso em títulos (1:2, 1:4, 1:8 etc.). Os testes não treponêmicos, apesar de inespecíficos, podem ser utilizados no diagnóstico (como primeiro teste ou teste complementar) e também no monitoramento da resposta ao tratamento e controle de cura. A queda adequada dos títulos é o indicativo de sucesso do tratamento.
O VDRL e RPR são testes úteis e baratos, mas inespecíficos; resultados falso‐reagentes, ainda que raros, podem ocorrer. Anticorpos anticardiolipinas podem estar presentes na hanseníase virchowiana, doença de Lyme, HTLV‐1, malária, tuberculose e outras doenças em que ocorre a lise de células que contêm cardiolipina em sua estrutura, como diversos de patógenos e da própria célula humana (tabela 1).70 Em pacientes com quadro clínico suspeito de sífilis e testes inespecíficos com títulos baixos, deverão ser feitos testes treponêmicos, com alta especificidade, tais como TR, FTA‐Abs, TPHA, MHA‐TP ou outros. Caso não haja disponibilidade de um desses testes, é aconselhável que o paciente seja tratado como portador de sífilis.
Situações que podem gerar resultados falso‐reagentes nos testes não‐treponêmicos
Situações que podem gerar resultados falso‐reagentes transitórios | Situações que podem gerar resultados falso‐reagentes permanentes |
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Após imunizações | Uso de drogas injetáveis |
Após infarto do miocárdio | Doenças autoimunes (síndrome do anticorpo antifosfolípide e lúpus eritematoso sistêmico, outros) |
Algumas doenças infecciosas febris (malária, hepatite, varicela, sarampo, mononucleose infecciosa, outros)Gravidez | Infecção pelo HIV |
Hanseníase | |
Hepatite crônica | |
Idade avançada |
Fonte: Ministério da Saúde; 2021.70
A análise isolada de um único resultado de teste não treponêmico pode induzir a erros de diagnóstico e decisões terapêuticas inadequadas. Altos títulos em pacientes adequadamente tratados podem estar em queda, e baixos títulos podem ocorrer em três situações: infecção recente, estágios tardios da infecção (sífilis tardia), indivíduos tratados adequadamente, mas que ainda não negativaram ou não o farão (cicatrização sorológica). O termo cicatriz sorológica é utilizado nas situações em que o indivíduo, comprovadamente tratado, apresenta queda da titulação em duas diluições, mas ainda mostra reatividade nos testes. Nesses casos, os testes treponêmicos tendem a ser reagentes e os testes não treponêmicos quantitativos apresentam baixos títulos (≤ 1:4).
De modo geral, os testes imunológicos para sífilis, nas PVHIV, não apresentam alterações quando comparados aos realizados em indivíduos não coinfectados. No entanto, nas PVHIV pode ocorrer maior frequência de altas diluições, maior tempo para negativação dos testes, bem como resultados falso‐negativos.
Em pacientes não coinfectados com HIV, a taxa de falsos negativos varia de 1% a 2%, enquanto nos pacientes coinfectados pode chegar a 10%. Isso pode ocorrer pela incapacidade dos pacientes em desenvolver resposta imune com produção de anticorpos contra T. pallidum. Em relação aos testes não treponêmicos (VDRL), verifica‐se ainda aumento de falsos‐negativos relacionados ao efeito prozona. Esse efeito pode estar relacionado ao funcionamento anômalo das células B, levando a aumento da produção de anticorpos contra antígenos diversos.71
De acordo com o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Manejo da Infecção pelo HIV em Adultos, do Ministério da Saúde, no seguimento clínico das PVHIV, deve‐se realizar, semestralmente ou após toda exposição sexual de risco, teste imunológico.72
Pesquisa de treponema em campo escuroA pesquisa de treponema em campo escuro é realizada por meio de amostras obtidas de lesões primárias ou secundárias de sífilis, em adultos ou em crianças. A coleta de material de lesões da cavidade oral não é recomendada face à presença de outras espiroquetas saprófitas, as quais podem resultar em falso‐reagentes. O exame deve ser coletado a fresco do exsudato seroso da lesão, devendo‐se evitar eritrócitos, outros organismos e restos de tecido. Imediatamente após a coleta da amostra, o material obtido é levado ao microscópio com condensador de campo escuro para a visualização de T. pallidum.
Para a identificação de T. pallidum por meio dessa técnica é importante observar sua morfologia, tamanho e movimentos típicos. A espiroqueta consiste em organismo fino (0,10 a 0,18μm de largura), com 6 a 20μm de comprimento e oito a 14 espirais regulares. Treponema pallidum move‐se rapidamente, e é possível identificar movimentos de alongamento e encurtamento; ele gira relativamente devagar ao redor do seu eixo longitudinal, além de realizar flexões sincopadas e torções em sua região central. Na microscopia de campo escuro, as espiroquetas aparecem na forma de corpos espiralados brilhantes e brancos, iluminadas contra um fundo negro.70
Exame de material coradoA coleta de amostra para esse exame deve ser realizada da mesma maneira que a amostra para o exame direto a fresco. Os métodos disponíveis são:
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Método Fontana‐Tribondeau: deixa‐se secar o esfregaço da amostra na lâmina e depois é realizada a coloração com nitrato de prata, o qual impregnará a parede celular do treponema, permitindo assim a visualização do parasita ao microscópio;
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Método de Burri: essa técnica é realizada com tinta da China (nanquim);
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Método de coloração pelo Giemsa: T. pallidum é corado de modo tênue (palidamente); é difícil a observação das espiroquetas;
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Método de Levaduti: utiliza a prata em cortes histológicos.
A sensibilidade do exame de material corado é inferior à pesquisa do treponema em campo escuro.70
Punção liquóricaA punção liquórica está indicada em situações de suspeita de neurossífilis, e é recomendada em situações específicas do diagnóstico da sífilis e seguimento do paciente após instituído o tratamento. É válido reforçar que a análise do líquor deve conter a pesquisa de citologia, perfil bioquímico e VDRL no material.
Indica‐se punção lombar para a pesquisa de neurossífilis nos seguintes casos: presença de sintomas neurológicos ou oftalmológicos, em caso de evidência de sífilis terciária ativa e após falha ao tratamento clínico sem reexposição sexual. Para PVHIV, a punção lombar está indicada após falha ao tratamento, independentemente da história sexual.
Já no caso de seguimento do paciente tratado inicialmente sem neurossífilis, recomenda‐se o procedimento quando há suspeita de falha terapêutica, ou seja, falha da queda do teste não treponêmico nos retornos ambulatoriais de seguimento sorológico. Também está indicada a punção nos pacientes diagnosticados com neurossífilis para o seguimento laboratorial de sua infecção, com exame realizado de seis em seis meses. Pacientes tratados que não apresentarem redução esperada dos títulos de VDRL devem ser investigados com punção liquórica sobre a possibilidade de neurossífilis.
Apesar de não constar como critério pelo Ministério da Saúde, alguns autores indicam o exame a todos os pacientes coinfectados com sífilis e HIV, independentemente do estágio clínico, que apresentem pelo menos um dos seguintes critérios:72
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Sinais ou sintomas neurológicos ou oftalmológicos;
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Evidência de sífilis terciária ativa (aortite, gomas sifilíticas, entre outros);
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Após falha do tratamento clínico.
A penicilina tem sido a base do tratamento da sífilis desde que se tornou amplamente disponível no final dos anos 1940. A resistência de T. pallidum à penicilina nunca foi relatada, e como essa bactéria divide‐se mais lentamente que as demais, é necessário manter os níveis de penicilina no sangue acima da concentração inibitória mínima por pelo menos 10 dias, o que é atingido com a administração de uma única injeção intramuscular de penicilina G benzatina de ação prolongada.
Sífilis primária, secundária e latente recenteO antibiótico de primeira linha é a penicilina G benzatina, na dose total de 2.400.000 UI, por via intramuscular, em dose única – faz‐se 1.200.000 UI em cada glúteo. A doxiciclina, 100mg, por via oral, duas vezes por dia, durante 15 dias, pode ser empregada como fármaco alternativo (exceto em gestantes).
Sífilis terciária e latente tardiaAdministra‐se penicilina G benzatina, na dose de 2.400.000 UI, por via intramuscular, uma vez por semana, durante três semanas, totalizando 7.200.000 UI. O fármaco alternativo é a doxiciclina, 100mg, por via oral, duas vezes ao dia, durante 30 dias (exceto em gestantes). Para as gestantes comprovadamente alérgicas à penicilina, recomenda‐se a dessensibilização, em serviço terciário, de acordo com protocolos existentes.
Indivíduos com diagnóstico confirmado de sífilis cuja duração da doença não possa ser determinada devem ser tratados como portadores de sífilis latente tardia.
Neurossífilis e sífilis ocularUma vez que a penicilina G benzatina não tem capacidade de transpor a barreira hematoencefálica, o tratamento da neurossífilis é hospitalar, com penicilina cristalina, 18.000.000‐24.000.000 UI, por dia, por via endovenosa, administrada em doses de 3.000.000‐4.000.00UI, de 4 em 4 horas, durante 14 dias. A ceftriaxona, 2g, por via endovenosa, uma vez ao dia, pode ser empregada, como alternativa, durante 10 a 14 dias.
CriançasFase recente: penicilina G benzatina, 50.000 UI/kg, por via intramuscular, em dose única.
Fase tardia: 50.000 UI/kg de peso, por via intramuscular, uma vez por semana, durante três semanas.73
De acordo com o Ministério da Saúde, face ao cenário epidemiológico atual, recomenda‐se tratamento imediato com benzilpenicilina benzatina após apenas um teste reagente para sífilis (teste treponêmico ou teste não treponêmico) para as seguintes situações (independentemente da presença de sinais e sintomas de sífilis): gestantes, vítimas de violência sexual, indivíduos com chance de perda de seguimento, indivíduos com sinais e/ou sintomas de sífilis primária ou secundária ou indivíduos sem diagnóstico prévio de sífilis.
Pessoas vivendo com HIVEm PVHIV, o tratamento deve ser realizado de modo semelhante ao de indivíduos não coinfectados. Até o momento, no Brasil, não há evidências de resistência de T. pallidum à penicilina benzatina.
Em PVHIV com sífilis precoce, pode haver risco aumentado de complicações neurológicas e taxas mais altas de resposta sorológica inadequada após uso dos regimes recomendados. Embora existam poucos dados, nenhum regime de tratamento para sífilis demonstrou ser mais eficaz na prevenção da neurossífilis, em PVHIV, do que os regimes de sífilis recomendados para a população geral.74
O acompanhamento cuidadoso após a terapia é essencial, e o uso de terapia antirretroviral, conforme as diretrizes atuais do HIV, pode melhorar os resultados clínicos entre pessoas coinfectadas com HIV e sífilis. Diferenças na resposta ao tratamento de pacientes coinfectados HIV‐sífilis podem não se aplicar àquelas com supressão virológica do HIV.74
Reação de Jarisch‐HerxheimerA reação de Jarisch‐Herxheimer é caracterizada pela exacerbação das lesões cutâneas preexistentes, associadas à dor ou prurido, mal‐estar geral, febre, calafrios, cefaleia e artralgia. Esse quadro clínico é decorrente da destruição maciça de treponemas com o tratamento instituído, o que provoca, no hospedeiro, tempestade de antígenos que induzem resposta inflamatória nas mesmas proporções. Assim, é mais comum no tratamento das formas de secundarismo, principalmente com altos títulos de testes não treponêmicos, e pode ocorrer durante as 24 horas após a primeira dose de penicilina. Esse quadro regride espontaneamente, em geral, em 24 a 48 horas. Se necessário, analgésicos podem ser empregados.75
O principal diagnóstico diferencial é a alergia à penicilina benzatina. No entanto, esse quadro é raro e, geralmente, caracterizado pela presença de lesões urticariformes.
Monitoramento após o tratamentoOs testes não treponêmicos são importantes no controle de cura dos pacientes, devendo ser realizados três, seis e 12 meses após o tratamento.
Considera‐se resposta imunológica adequada ao tratamento a diminuição da titulação em duas diluições dos testes não treponêmicos em até seis meses, em indivíduos com sífilis recente, e duas diluições até 12 meses nos casos de sífilis tardia.76 Pode ocorrer sororreversão (teste não treponêmico não reagente) ou evolução para cicatriz sorológica. A negativação dos testes treponêmicos não é esperada após a cura do paciente.
O monitoramento dos pacientes após o término do tratamento para sífilis, incluindo PVHIV, deve ser realizado com teste não treponêmico, preferencialmente com mesmo método diagnóstico, a cada três meses até o 12° mês do seguimento do paciente, e a cada seis meses até o 24° mês nos pacientes cujos exames não negativaram. Em gestantes, o teste deve ser realizado mensalmente.
Ações de controleUm dos pilares das ações de controle da sífilis adquirida é o contínuo estímulo à realização de atividades educacionais sobre todas as IST, incentivando a prevenção das mesmas com o uso de preservativos. O diagnóstico precoce da doença deve ser incentivado por meio da ampliação da oferta de TR na rede pública. É importante, ainda, que haja treinamento contínuo dos profissionais de saúde, principalmente os que atuam na atenção básica, para o precoce diagnóstico, correto tratamento, adequado seguimento e notificação dos casos de sífilis.77
A avaliação e o tratamento das parcerias sexuais é crucial para interromper a cadeia de transmissão da sífilis. Para as parcerias que referem exposição à pessoa com sífilis, em até 90 dias, recomenda‐se oferta de tratamento presuntivo a esses parceiros sexuais (independentemente do estágio clínico ou sinais e sintomas), com dose única de benzilpenicilina benzatina 2,4 milhões UI, intramuscular (1,2 milhão UI em cada glúteo).
Além da promoção do sexo seguro com base no uso de preservativo, outras medidas de prevenção são importantes e complementares para a prática sexual segura, como imunização para hepatites B, C e HPV; conhecimento do status sorológico par a HIV da(s) parceria(s) sexual(is); testagem regular para HIV e outras ISTs; testagem de todas as PVHIV; realização de exames preventivos de câncer de colo de útero; realização de profilaxia de pré‐exposição (quando indicada); acesso à anticoncepção e concepção e realização de profilaxia pós‐exposição (quando indicada).70
Deve‐se salientar que, na suspeita diagnóstica de sífilis ou mesmo referência a contato sexual desprotegido, indica‐se a testagem não só da treponematose, mas também das demais ISTs detectáveis, como HIV, hepatites e HTLV, nas áreas endêmicas.
Suporte financeiroNenhum.
Contribuição dos autoresCarolina Talhari: Concepção e o desenho do estudo; levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Kaique Arriel: Redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica da literatura.
Marcio Soares Serra: Aprovação final da versão final do manuscrito; redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante.
John Verrinder Veasey: Concepção e o desenho do estudo; levantamento dos dados, ou análise e interpretação dos dados; redação do artigo ou revisão crítica do conteúdo intelectual importante; obtenção, análise e interpretação dos dados; participação efetiva na orientação da pesquisa; participação intelectual em conduta propedêutica e/ou terapêutica de casos estudados; revisão crítica da literatura; aprovação final da versão final do manuscrito.
Conflito de interessesNenhum.
Como citar este artigo: Talhari C, Arriel K, Serra MS, Veasey JV. Acquired syphilis: update on clinical, diagnostic and therapeutic aspects. An Bras Dermatol. 2025;100. https://doi.org/10.1016/j.abd.2024.11.002.
Trabalho realizado na Clínica de Dermatologia, Hospital da Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.